sábado, 15 de outubro de 2011

Pequena síntese da minha aflição com o filme "Pacific"


Esse trecho é parte de uma coisa bem mais longa que estou tentando desenvolver sobre o documentário "Pacific", de Marcelo Pedroso, feito apenas de imagens gravadas por passageiros (cedidas para Pedroso) durante uma viagem de uma semana a bordo do cruzeiro de luxo Pacific

Por mais que as intenções de Pedroso estejam claras (tem que descer um pouco a pagina), e por mais que as imagens tenham sido cedidas pelos passageiros do Pacific, ainda há algumas questões. Muitos espectadores, dentre eles o crítico Jean Claude Bernardet, além de alguns dos autores das imagens, sentiram-se constrangidos ao assistirem imagens que pertencem a uma esfera tão privada da vida. Elas foram cedidas deliberadamente, sim, porém os passageiros não faziam ideia do que seria feito delas.

A construção final de “Pacific” visa uma ambiguidade. Muitas foram as reclamações de que o diretor havia exposto aquelas pessoas ao ridículo, e algumas delas próprias, ao assistirem o filme, afirmaram o mesmo.  É possível refletir se esse “ridículo” não passa de uma projeção do espectador sobre aquelas imagens, se na verdade não somos nós que estaríamos nos distanciando e nos colocando numa posição privilegiada fora daquele mundo de luxo e excesso, idiotia e constrangimento (ou simplesmente nos deixamos levar pela diversão).

Mas o problema é justamente essa ambiguidade intencional de Pedroso. Não é que ele, enquanto autor e manipulador daquelas imagens, se isente de qualquer responsabilidades sobre elas, e jogue a culpa pela divergência de interpretações no espectador. A questão é na verdade se é possível ou válido (eticamente, sim), se é eficaz utilizar de imagens tão privadas com a intenção de realizar um discurso ambíguo; se a natureza dessas imagens, se suas condições de nascênça suportam o peso retórico que Pedroso tenta injetar nelas. Essas pessoas então teriam suas ações privadas expostas e resignificadas agora dentro de um contexto onde elas praticamente atuam contra si mesmas*, e de forma esquizofrênica (dada a invisibilidade do narrador, de uma suposta inesgotabilidade das imagens). Nessa perspectiva, é fácil entender porque alguns dos passageiros do cruzeiro se mostraram indignados com o filme. E acho difícil culpá-los por isso.

Um exemplo: há uma sequência onde um dos passageiros (o "personagem principal", um passageiro especialmente empolgado em registrar aparentemente cada segundo da viagem. Usei "aparentemente" não por acaso) está filmando seus dois filhos pequenos, uma menina e um menino de seis ou sete anos. As crianças estão brincando na praia. O menino começa a destruir um desenho que a irmã fez na areia. O pai manda o garoto parar, e a menina começa a gritar, um grito que se mistura com risos (mistura tão característica e indissociável), enquanto corre atrás do garoto pela praia, ambos gritando/rindo numa perseguição divertida. A sequência é rápida, mas o ponto de Pedroso parece ser (1) que o pai não intervém, não pára de filmar, é conivente com a crueldade, ou (2) está tão absorvido pela câmera, tão inserido na aura contemporânea (sim) de registro e compartilhamento e autonarrativização imediatas que  ele continua lá, filmando e rindo. A sequência possui um peso todo especial e desconfortante quando inserida naquela lógica narrativa, uma clima ruim, os gritos daquelas crianças reverberam além da conta, e esse peso é a síntese da minha birra. A natureza dessas imagens é a de uma pequena rotina familiar, onde crianças estão sendo crianças, onde a brincadeira/briga foi esquecida antes mesmo da sequência terminar. E, dentro do filme, ela se pretende um comentário, faz parte de uma argumentação maior. E este é o movimento básico do filme. Como injetar significações ou extrair conclusões de imagens dessa natureza? Toda e qualquer tipo de imagem pode ser considerada matéria prima?**

Eu sentiria o mesmo receio de aceitar qualquer argumentação que utilizasse o tipo de veículo que Pedroso utilizou, fosse esse ou outro discurso. O problema não está na crítica, ou no alvo dela, mas sim no suporte. Não consigo sequer começar a refletir sobre o que quer que seja extrafilme com imagens que se movem tão nitidamente, tão obviamente para dentro, que a cada instante evocam as condições de sua gênese. (A história do documentário está repleta de lições sobre a falência metonímica de suas imagens).  O problema aqui é pessoal. Eu não consigo aceitar o que aquelas imagens estão me dizendo, há um constante bloquear: sempre quando, após alguma sequência significativa, ouço mentalmente o clique -- algo acaba de me ser sugerido e faço um aaah táá -- imediatamente outra parte da mente entra em cena e bloqueia a sugestão, desviando minha atenção para a estrutura, pra montagem, para  a invisibilidade deliberada e desviadora de Pedroso. E a presença de Pedroso, enquanto narrador e remontador dessas imagens, acaba soando tão estranha e problemática quanto deve ter sido pra ele estar naquele cruzeiro.

*Claro que essa questão é discutível, e aí entrariam documentários de denúncia, protesto, com ditadores como protagonistas, até aqueles que procuram entender o "mal". Poderia ser argumentado que o documentário protagonizado pelo Idi Amin Dada, pelos meus critérios, também não seria válido porque o Idi Amin atua contra si mesmo, se ridicularizando involuntariamente, dentro da montagem proposta por Schroeder. Mas o meu ponto é que provavelmente nenhum deles utiliza, por exemplo, imagens filmadas pelos próprios personagens. E aí entra a velha questão da não-artificialidade, da realidade sendo mostrada supostamente crua e nua, etc.


**Penso no trabalho de outros documentaristas que se valem de imagens de arquivo, ou filmadas por outros, para montarem seus trabalhos, por exemplo o Harun Farocki, que  questiona (literalmente, dentro do próprio filme, na medida que as imagens vão aparecendo)  as imagens em si, o contexto em que elas foram produzidas, e seu valor enquanto cinema. Não é a toa que ele mesmo diz que "trabalha contra o cinema".