segunda-feira, 21 de dezembro de 2015

Schreber, Kittler e uns nervos


Daniel Paul Schreber era diariamente submetido a 0,3 gramas de ópio como parte de seu tratamento médico. Mesmo que não ingerisse tanto ópio (e ingeriu), “o restante das neuropsiquiatrias experimentais de Flechsig [o famoso médico de Schreber] já seriam o bastante para transformar qualquer um em paranoico”. Assim comenta Kittler. Os experimentos médicos de Flechsig “apenas puderam ter sido o salto equivalente ao entre o da Idade Média e a Medicina que foram porque ele dispensava todo idealismo, todo aquele papo romântico de alma e espírito”. Nada que não pudesser ser localizado e experimentado era digno de sua atenção. A medicina de Flechsig e o furor cientificista justificavam que um louco como Schreber fosse submetido aos experimentos de Flechsig, já “que nada poderia ser tão horroroso quanto aquilo a que seus próprios nervos o submetiam”. 

Pouco tempo antes, após tentativas frustradas de localizar no cérebro humano o exato local onde produzia-se linguagem, um outro cientista se rendeu: “é como se sofrêssemos de normalidade!” Deixem essa frase afundar um pouco. Procurava-se um orgão com uma etiqueta escrito ‘aqui produz-se linguagem’ – dominados pela excitação do primeiro Orkontro da medicina. Lindo. De todo modo, esse é o comentário de Kittler, que já foi acusado tanto de um cientificismo análogo ao de Flechsig (por causa da obsessão por documentos, por plantas, manuais de instruções da Microsoft, matemática da comunicação, nerdices sobre a Segunda Guerra, Hegel), quanto de ser um hippie nostálgico por uma década de 60 ilusória que, na verdade, nunca teria passado de uma mistura dos Estados Unidos de Jimi Hendrix com a França de Foucault e cia.

Quanto mais aquele que foi marcado pelo estigma da loucura tentar ser racional, tentar falar calmamente, explicar seus motivos, demorar-se tanto em seu método que acabe parecendo alguém implorando por compreensão, enfim, quanto mais aquele que se valer, mesmo que brilhantemente, de ferramentas que não deveriam pertencer-lhe, para livrar-se do estigma, tanto mais a marca da loucura brilhará. Na boca do louco a razão é monstruosa, pois utiliza com paciência insuportável as ferramentas que utilizamos suavemente. Daí que o louco perde porque é mais racional, racional demais. Como uma criança com uma ferramenta pesada. Isso tudo é evidente. 

Freud, no entanto, disse que “Schreber deveria ser o diretor do asilo em que encontra-se agora como um mero paciente” (não lembro a citação exata). Por que? Schreber fala ora como um cientista, ora como um xamã, ora como um estrategista de guerra, ora como o espírito da razão, ora como um jurista declarando uma sentença insuportavelmente razoável. Nem Freud duvidava do conhecimento divino que Schreber dizia ter alcançado, essa nem é a questão. Tendo sido submetido a tais tratamentos, Kittler leva (como é seu costume, e como é o costume de quem tenta ouvir o interior das mídias) bem a sério as palavras de Schreber no prefácio de sua autobiografia: ‘escrevi meu livro para provar minha sanidade’. Schreber escreveu sua autobiografia pra vazar dali. Seu livro é uma contraforça. Kittler nunca disse que Schreber era ‘normal’, ou que não precisasse de tratamento. O Deus torturador das alucinações de Schreber, que envia nervos do céu para se comunicar com o jurista, Kittler diz tratar-se do próprio Flechsig, que obteve direito legal de dissecar os nervos de Schreber antes de sua morte. “Bodies lie like corpses along the technical path to the present”, afinal. É meio bobo mas não menos triste que pra nós, cheio das ferramenta, cheio das luzinha, o conhecimento adquirido por Schreber fica inacessível. Em outras palavras, o resultado disso é a tendência inevitável de ler a autobiografia de Schreber como literatura, que Kittler tenta combater, para dizer que (e adicionar mais uma nota aos infindáveis leitores-escritores de Schreber) ela pode ser lida também como um escrito técno-científico sobre 1) a tendência da ciência de só conseguir conhecer o que está morto (ou impessoal, ou despersonificado, desapaixonado) e 2) o que escutaríamos se conseguíssemos (sem adoecer) oferecer nossa completa e irrestrita atenção aos nossos nervos. Para Kittler, Schreber trata da linguagem dos nervos mesmo. Alma vai, alma vem.

quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Um sonho antigo

Em qualquer galeria de arte decadente, de política do corpo, de exposição de fluxo, eles estariam lá, os cariocas, os novos cariocas, os cariocas que pela primeira vez na história da Guanabara se autointitulam cariocas de uma maneira diferente dos outros cariocas, a palavra agora pronunciada com outro fôlego, inspirado em ares recentes, renovados. Ver corpo e pele e pobreza estetizados é uma educação.

Era o prédio antigo, no centro da cidade, onde havia morado dos três aos doze anos de idade, que agora tinha infinitos andares. Estava no elevador, que subia sem parar, e a cada andar tudo se tornava mais decadente. O elevador parou no penúltimo andar e ele saiu para o corredor: um oásis de riqueza. Era o apartamento de uma senhora rica que ele agora ajudava com as compras. Ele carregava todas as compras e a senhora nenhuma. Quando terminou de depositar as sacolas na cozinha, a senhora o abandonou sem agradecer, e ele foi deixado sozinho para encontrar o caminho pra fora daquele labirinto de riqueza.

Encontrou o caseiro.

– Onde fica o elevador?

– É melhor você pegar a escada porque a vizinhança tá cada vez pior. A escada te levará a um lugar seguro, o elevador não.

– Tá tão violento assim? Não era assim antes.

– Pega a escada.

Andou e andou mas nada de escada. Andava com receio de encontrar a dona da casa, que foi o que acabou acontecendo. Diante dela a vergonha era insuportável. Ele falou rápido, com vergonha, com pressa de sair dali.

– Desculpe incomodá-la de novo, senhora, mas não encontro nem o elevador nem a escada.

– Vai por ali, ela disse sem olhá-lo.

Do lado do elevador estava a escada, que só descia, embora houvesse mais um andar acima. Para baixo era um túnel infinito por onde só se enxergava escuridão. Pegou o elevador.

A luz amarelo-vômito do elevador era conhecida, era a da sua infância, a do prédio onde cresceu, mas no sonho, ou na infância mesmo, era luz de pobre. O elevador subiu sozinho.

As portas se abriram e ele saiu para um vasto espaço fechado de pura decadência, como um aeroporto vazio ou um estacionamento feito de banheiro de boteco. Era uma galeria de arte. Paredes de concreto sem acabamento, cinza e preta, cobertas de pichações e figuras extremamente realistas, tridimensionais, de gente pregada na parede, entulho também mas só nos cantos, ligeiramente estetizados. A vaziês era reforçada por uma dupla de garotas que se detinham nas paredes para observar uma pichação ou um entulho. Ele fez o mesmo, se sentindo um hipócrita.

Ouviu uma voz familiar distante o chamando. Era sua ex-namorada, que estava com a namorada. Fazia sentido sua ex-namorada estar numa exposição de arte decadente, e ainda mais namorando uma menina, assim, aos quatro ventos. O circuíto carioca de arte de vanguarda cumpria o que prometia. Ele continuou observando as pichações.

Sua ex-namorada veio correndo atravessando toda a galeria de pobreza, inclusive deixando a namorada para trás. Ela chegou recuperando o fôlego, exultante de alegria com a coincidência de encontrá-lo ali. Havia carinho e amizade genuínas nela, diante dele, essa pessoa que já fora tão importante pra sua vida, e ele se comoveu. Mas reencontrar uma memória que já fora triste, depois feliz, depois triste de novo – sua empolgação descontextualizada agora nos constrange. Em sua comoção um demônio veio embrulhado e nasceu nele o desejo de crueldade.

Ela foi abraçá-lo e ele colocou um braço entre eles.

– Calma, menos.

A expressão dela fechou, mas ela lutou para manter viva a alegria. Ele quis chorar, mas estava indignado demais pela falta de recato.

– Que coisa te encontrar aqui, como você tá, o que tem feito da sua vida? Me conta!

A namorada os alcançou.

– Essa é a sua namorada? Parabéns, hein.

A namorada olhou para a ex-namorada, u m olhar cúmplice, um olhar de quem não estava nem um pouco surpresa.

Ele, sua alma, era irremovível, e diante das duas, estava ali como uma armadura sem corpo guardando os turistas de um museu.

– Essa é X, X, esse é o meu ex-namorado. Eu queria tanto que vocês se conhecessem.

– Pra quê?

– Acho que vocês iam gostar um do outro. Vocês são as pessoas mais interessantes que já conheci.

A namorada revirou os olhos.

– Mas você tá gostando da exposição? Me conta algo da sua vida.

– Isso não é uma exposição, isso é pobreza de verdade. Minha vida tá igual sempre, você sabe disso e continua me perguntando.

A ex-namorada olhou a namorada. Nada de novo no front.

Ele se irritou.

– Já não basta você vir aqui ver pobreza em museu, ainda tem que fazer isso no prédio onde morei muitos anos antes de sequer te conhecer? Deixe minhas memórias fora disso.

– Ele é realmente o filho da puta que eu imaginei, privadamente, enquanto você me contava dele com os olhos brilhantes e um pouco tristes, disse a namorada para a ex-namorada.

A namorada começou a puxar a mão da ex-namorada para irem embora. Mas a ex-namorada se desvencilhou e o abraçou.

– Fica bem. Qualquer coisa me liga.

E as duas continuaram andando pela galeria, se detendo nas obras. Ele foi esquecido ou sequer existiu.

Extirpado de seu corpo, ele agora era a câmera, puro ponto de vista. A ex-namorada chorou e correu para o banheiro. Havia papel higiênico manchado de merda no chão e nas paredes. Ela se ajoelhou na privada suja. Chorou muito mas não se sujava. Vinha a voz abafada da namorada: “Por que você sofre por aquele babaca?”. Ela se acalmou e era uma adolescente que se exaure de tanto chorar e agora escreve em seu diário como se recuperasse o fôlego. Ele viu as palavras que ela escrevia, estavam escritas na água suja da privada, mas eram um texto mal editado em fita VHS, e não significavam nada ou ele havia desaprendido a ler ou significavam apenas o que todo texto transmitido por mídias antigas significa em primeiro lugar, uma obsolescência ingênua de ponto de vista, à despeito da mensagem.

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Netflix, sexta à noite, numa democracia

And I’m neither left nor right
I’m just staying home tonight
Getting lost in that hopeless little screen

Na música de Leonard Cohen, alguém se perde em uma TV em meio à segunda vinda da democracia, diante da qual que se foda, Netflix and chill.

De tal modo, vejo no twitter que, com o Netflix, alguém tem a noite garantida. É uma evocação de alianças e referências, lista de nomes e títulos, uma fortaleza espiritual contra os inimigos declarados lá fora, curtindo muito. Essa é a narrativa que se desenvolve na Internet, imediatamente reconhecível e compartilhada.

Leonard Cohen descreve o famoso isentão. Nem esquerda nem direita, apenas Eu, como sabia o Orkut. O isentão de isento não tem nada, é só mais uma escolha. Nada mais democrático que dispensar a política para dar lugar a sentimentos antidemocráticos, indiferentes – já previstos democraticamente no seu Eu. Mas entre quatro paredes, sexta à noite, o Eu é insuportável, e precisa ser diluído numa tela.

Ele nunca antes existiu tanto quanto existe hoje. Quem encontra no netflix um refúgio contra as pressões da sexta-feira confirma na realidade cotidiana o que disse Isaiah Berlim sobre o romantismo – menos uma época ou um movimento do que um estado de espírito que pode ser encontrado em qualquer lugar.

Em uma viagem à Rússia, Walter Benjamin se hospeda em um hotel ocupado "quase inteiramente por lamas tibetanos”. Ele nota que os hóspedes deixavam as portas dos quarto sempre abertas. Acontece  que os monges eram membros de uma seita que havia feito votos de “nunca permanecer em lugares fechados”, e conclui, para ilustrar o Eu que o surrealismo contrapunha à “individualidade burguesa”, romântica: “viver numa casa de vidro é uma virtude revolucionária por excelência.”

Você o conhece. Você o sente de vez em quando, como presença física, sempre que chega da rua. Ele nasce entre quatro paredes. Ele se precipita na vontade de privacidade, na vontade de não ser incomodado, na vontade de não ser visto, no direito à individualidade garantido pela democracia. Ele dança quando você se resfolega na melancolia gostosinha de estar existindo entre quatro paredes, entrincheirado da sexta-feira.

Houve uma época em que tentaram dispensá-lo como mero construto, como se o desmistificar de sua artificialidade bastasse para eliminá-lo. Mas cá estão vocês, existindo pra caralho, autentica ou artificialmente.

Numa democracia é o seu direito, talvez a sua obrigação, trancar-se entre quatro paredes (protestos de rua não viram notícia porque são uma excessão?). De todo modo, está tudo previsto. Surrealismo mesmo seria descobrir que, numa casa de vidro, o Eu é como um cadáver mal embalsamado. A única casa de vidro que conheço é a rua. Saía na rua e ele será forçado a ser arrastado. Você o sente, sente seu fedor – basta ser visto por olhares que não batem com os do seu inventório particular, que consiste em variações do seu olhar sobre os outros.

Na Internet, ele aparece na ostentação de zoa da solidão. A internet não é uma espécie de rua. Aqui, você o manipula, o revira, estetiza suas partes e finge tacar fogo nelas, simbolicamente, como um político de palha queimado em auto-da-fé. Todo dia alguém quer desaparecer, ninguém aguenta nada, mas só muito poucos desaparecem mesmo.

“What no one knows about you is what allows you to know yourself”, uma frase de DeLillo encontrada na Internet. Entre quatro paredes você pode ficar triste de boa sem ser  muito incomodado pela insuficiência do seu inventário. Na rua as coisas se complicam: em teoria, do alto da sua racionalidade, ninguém sabe nada sobre você, mas e as mensagens que você envia o tempo todo? Suas roupas, seu cabelo, seu andar, seu olhar. Ninguém te conhece menos do que você, caminhando num miasma de fedor.

Fui descobrir muito tempo depois que a frase de DeLillo é uma reformulação do que diz o Monsieur Teste do Valery: “É o que tenho de desconhecido a mim mesmo que me faz ser eu mesmo”.

Mais de meio século separam essas duas frases. A diferença fundamental entre elas é que na primeira o que te permite ser você mesmo são os outros, e na segunda é o que você mesmo não sabe sobre ti o aquilo te faz você. Valery a escreveu no auge do surrealismo, e ela pode ser entendida como uma forma de se dizer que o que se conhece de si mesmo, aquilo que é sentido na pele trancado no seu quarto, vem de outros lugares, é imposto a você. Embora pareça nova, e embora tenha suas aplicações, para o contexto que estou criando essa é a velha maneira de se lidar com o eu: o desconhecido – que já foi chamado de embriaguez, intoxicação, sonho, delírio etc – seria mais constitutivo da sua pessoa porque ainda não teria sido mapeado – o que no fundo é uma mentira, sempre tem um mapa (normalmente grego.)

Para algumas pessoas, não é preciso muita coisa para se acreditar estar delirando, ficando maluco, prestes a desaparecer. É tanta normalidade performativa que qualquer desviozinho já ganha ares de hospício. A internet mostra isso todos os dias.

“If you reveal everything, bare every feeling, ask for understanding, you lose something crucial to your sense of yourself”, outra de DeLillo, de onde é possível esvaziar sua seriedade e inserí-la em outro contexto, mais zoado. Pois olhe a zoa que é a internet brasileira, produzidas principalmente por adolescentes. “Manda sentimentos”. “Por favor nunca te pedi nada”. “Namoralzinha” – mandar sentimentos fingindo ironia, ou fingir sentimentos com ironia, já virou uma tradição, uma escola.

Alguém alterna entre o Netflix e o Twitter e manda sentimentos sem especificar um destinatário, como se um nome próprio fosse destruir a pureza de algo que pertence livremente ao mundo. A que se referem essas mensagens, no fim do dia? Ao inimigo assumido do Eu, o objeto-último de toda ridicularização, aquilo que não pode ser separado de sua forma ironizada. Na narrativa implícita dessa internet (elas são muitas), se esse objeto de desejo fosse um dia alcançado ou realizado, adeus internet.

Enquanto isso não ocorre, qualquer um pode ser reduzido (como sabiam os gregos) a um adolescente na internet, cheio de furor e vergonha.

I love you for your beauty
but that doesn’t make a fool of me:
you are in it for your beauty too
and I love you for your body
there’s a voice that sounds like God to me
declaring, declaring, declaring that your body’s really you.

segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Ver a violência


Então, uns italianos estão desenvolvendo um jogo sobre manifestações de rua, violência policial, black bloc etc, inspirado nas muitas manifestações pelo mundo. O jogo é em estilo pixelado da geração 16bits e, até onde sei, é o primeiro que se vale, diretamente, dessa experiência.

Daí a Wired italiana realizou um festival onde o jogo foi apresentado num painel chamado “Pixel, coquetéis molotovs e black bloc: um computador para compreender a inquietação social”.

O secretário do sindicato da polícia italiana ouviu a notícia e enviou uma carta ao prefeito de Milão, onde conclama um boicote ao jogo (ainda mais, diz o secretário, considerando que um dos patrocinadores do evento foi a Audi, “cujos carros”, ainda segundo ele, e na deliciosa tradução do Google Translator, “são aqueles preferidos por revoltosos onde enfiar bombas e então uivar comerando”.)

Nada de novo em quererem proibir algo por acreditar que esse algo incita a violência. Mas o curioso é que, na carta, a menção não é a qualquer violência, mas sim a violência “contra policiais”, especificamente.

Sem nem considerar a violência geral e familiar de metade dos jogos que saem por ano, ainda resta uma lista interminável de jogos onde há o choque de algum tipo de ‘rebelde’ com uma ‘polícia’. Nenhum deles, me parece, jamais chamou atenção de nenhuma força de segurança. Sobrou pra um jogo ainda em desenvolvimento, cuja mecânica mal foi revelada, e do qual só temos algumas imagens. Por ser, diretamente, sobre desobediência civil.

Fica claro que, pro chefe do sindicato de polícia italiana, certos temas – não certos jogos, não certos objetos culturais, não certas artes – certos temas deveriam ser proibidos e pronto.

Não consigo imaginar nenhuma autoridade reclamando de um filme sobre manifestações que, por exemplo, fosse montado só com imagens gravadas por celular, com a câmera tremendo na correria, com os gritos, com aquela realidade toda vazando. Já me parecia que a tal estética ‘nua e crua’ é um código exaurido, ao menos em sua superfície mais imediata de instigância, urgência e verdade, e ao menos na cabeça mesma de quem deveria ser o alvo. É só ’arte’, é só ‘política’, é só retórica revolucionária batida, só desperta a vontade de desobediência em quem já tem. De maneira bastante geral, esse códigos já foram naturalizados faz tempo, e essa estética se autodecifra muito rapidamente pra permitir alguma experiência desviante.

Nesse ponto é preciso mostrar pra quem não conhece o que é um jogo pixelado. Veja no fim do texto o sprite da polícia, olhe o manifestante.

Não dá pra dizer de outra maneira: o poder que tem um pixel. Numa época em que, pra quem acompanha, saem por ano uns 40 jogos que emulam os saudosos gráficos do Super Nintendo e do Mega Drive, a ponto de já estar cansativo, temos cisudos oficiais poderosos engatilhando armas por causa de um jogo em estilo meio retrô.

Segundo o secretário, não é um ‘frame específico’, mas sim a mecânica que é o problema. Eu acho que não: sim, é uma mecânica que te coloca no lugar de alguém tacando um coquetel molotov, segundo foi noticiado (embora, aparentemente, também dos polícia), mas a interface para essa experiência vai ser a do pixel. É um polícial e um manifestante em forma de pixel. Não dá pra ser mais visível do que isso.

Está cada vez mais difícil pra polícia mandar um c’mon, there is nothing to see here.





sábado, 2 de maio de 2015

As máquinas estão fazendo literatura com nossas informações

Escrevi um artigo para o Caderno PrOA, do Jornal Zero Hora, sobre informação, Edward Snowden, militares hermeneutas, números enquanto entidade proteica e literatura.

http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/proa/noticia/2015/05/as-maquinas-estao-fazendo-literatura-com-nossas-informacoes-4752220.html

e-mail criptografado de Edward Snowden para Laura Poitras

domingo, 15 de março de 2015

quinze de março de dois mil e quinze



Tanta gente sabe tanto.

Por exemplo, a PM,
segundo o repórter da Globo News,
ela sabe por meio de

ferramenta tecnológica de mapeamento geo-referencial,

ênfase em tecnológica,
a partir de imagens aéreas
que foram um milhão de pessoas!
enquanto a datafolha contou duzentos mil
por método próprio
sem ênfase

(com uma caída de ritmo
que foi inserida meio de zoeira meio a sério na narratologia
com o nome de Bathos
que é quando cai do exaltado ao banal
e a coisa termina assim
meio xoxa).

É que, continua a Globo,
a folha não contou as adjacências da Paulista.

É tão angustiante imaginar um espectador da Globo News
acreditando que no Bathos do repórter
se esconde um fato explicativo,

ou imaginar o mesmo espectador concordando gravemente
com a gravidade tranquilizante do tecnológico,

quanto é olhar a foto das moças vestindo camisa de
Presidenta queremos nossa bolsa
com foto de uma bolsa
presumivelmente muito,
muito cara,
e pensar que é muito fácil,
que é a coisa mais fácil do mundo
zoar a foto, que é uma piada pronta,
e muito difícil
ver a seriedade da foto, que é só meio de zoeira;

ver – só ver – o esquerdismo da zoeira;
ver que o diálogo é impossível

porque a bolsa tem uma importância absurda,
que a gente só conhece de imaginar.
E se você pega um cara exaltado,
indignado com o absurdo,
que vai usar os argumentos marxistas necessários,
por algum desígnio do qual eu não me orgulho
eu as vejo dizendo
“Eu não reconheço o marxismo
da mesma forma que você não reconhece a bolsa”,
ou pelo menos quase da mesma forma,
“como visões de pertinência política.”

É bizarro,
é muito bizarro,
apesar de gente de humanas na internet –
que é meio de zoeira meio séria –,
como ninguém vê que o problema
talvez o grande problema
seja o de duas esferas que não se comunicam,
e que talvez dê pra aprender com os engenheiros que a gente de humanas zoava,
já que alguém precisa construir pontes.