sexta-feira, 7 de dezembro de 2018

Febre

Aos 39.5º de febre as coisas ficam claras. A civilização nos acostumou mal à hospitalidade cedida a nós pelos vírus e bactérias. Confundi a casa deles com uma coisa chamada Leonardo, que acabou por esticar as pernas e demandar serviçais, indulgente e preguiçosa. Do além-muros aproximam-se as milenares hordas de inimigos, e Leonardo, peso morto, é chutado para o quartinho de despejo, de onde assiste à tradicional carnificina por uma fresta na porta.

domingo, 12 de agosto de 2018

Sonhos lúcidos

Uns dias depois da morte do meu avô, comecei a ter sonhos lúcidos. Ontem, quando acordei de um cochilo, ouvi a porta da sala abrir. Eu estava deitado na cama do quarto e me inclinei pra ver quem chegava lá. Vi, lá longe, na sala, meu avô entrando com sacolas de supermercado. Nos últimos meses, já doente, ele passou um tempo aqui em casa. Mas ele era teimoso e vivia saindo. Ele era alto, magro, bem corcunda, desde a adolescência uma imagem do futuro para mim, curvado no computador desde sempre. Quando o vi com seu casaco cinza e as sacolas, pensei, estou sonhando. Ele acabou de morrer. Estou sonhando e sei disso. Isso significa que vai dar trabalho acordar, e acordar vai ser desagradável e doloroso, não só o ato de voltar à vigília mas também o de lembrar, depois, que meu avô está morto. Pensei tudo isso durante o sonho, enquanto ouvia as sacolas plásticas. Mas como eu poderia ter certeza que era um sonho? O sonho comprovou-se definitivamente como tal quando vi minha avó, falecida há muito mais tempo que meu avô, entrar em casa. Minha vó é velha personagens dos meus sonhos. O fato de eu vê-los pela fresta da porta evocava uma infância da qual me envergonho, quando eu me trancava para me isolar de reuniões familiares e via tudo pela fresta da porta do quarto, época em que presenciei minha avó lentamente definhando numa cadeira de rodas por uma doença paralisante e cruel. De todo modo, normalmente, nos sonhos, eu acreditava na minha vó, quero dizer, quando eu a via eu nunca sabia se estava sonhando, de modo que eu sempre acordava achando que sua morte é que tinha sido um sonho, que tudo não tinha passado de um sonho, ufa. Mas dessa vez o sonho era lúcido, e eu sabia que estava sonhando, e agora que ela entrou, eu pensei, só Deus sabe onde isso vai dar, e a decepção ao acordar desses sonhos com meus avós vivos era tão grande que eu sabia, sonhando, que tinha que dar um fim àquela farsa. Mas havia sempre a ideia de que eu podia estar acordado, e a morte deles é que teria sido um sonho. Então dei início à minha técnica para acordar de sonhos lúcidos: fechei os olhos e comecei a balançar violentamente a cabeça. O balançar da cabeça começou a abalar a realidade do apartamento, o que me confirmou que o alívio que eu havia sentido quando minha avó viva entrou era pura falsidade, puro truque, teatro, palhaçada. O foda da coisa toda é que, quando eu fechava os olhos no sonho, eu sentia vacilar a garantia que depositamos no que vemos e ouvimos normalmente no dia a dia. O sonho é frágil e não suporta um movimentinho de cabeça sem o mundo inteiro sacudir junto, de modo que a vigília — a memória dela que temos durante o sonho — não poderia ser diferente. De todo modo, eu sabia que estava mais perto de acordar porque minhas pálpebras começaram a ficar pesadas. Então — isso era parte da técnica de acordar — eu fazia um esforço enorme para abri-las. Isso era extremamente difícil, mas quando eu finalmente conseguia abrir os olhos, lá estava meu avô, na sala, remexendo nas sacolas plásticas. Não e possível. Eu devia estar acordado. Talvez meu avô voltasse da casa lotérica onde ele sempre ia trocar moedas, diligentemente separadas e enroladas em tubinhos de plástico. Ele era funcionário de banco e passou a vida trocando moedas. Enfim, comecei a jogar a cabeça para os lados com violência e a abrir e fechar os olhos para surpreender o sonho com minha atenção vigilante. Mas nada adiantava. Começou o desespero e a taquicardia. A última técnica que me restava era gritar. É o único jeito definitivo de saber em que estado você se encontra, se dormindo ou acordado. Não é fácil gritar num sonho, portanto se você tenta e não consegue, e também não consegue abrir os olhos, está garantido que é tudo uma farsa, um teatro cruel feito encomendado especialmente para você. A maneira de fugir dessa desgraça: abra a boca o máximo que conseguir, até sentir sua cara rasgar. Uma vez que você rasga a própria cara num berro, você sente outra coisa, um alívio, um afrouxar de pressão. Você volta à vigília, pesado, exausto. Ao contrário do sonho, a vigília reconhece seu esforço e, na sua volta, reclama apenas o cansaço e a respiração pesada, como se voltasse de uma experiência traumática, um pesadelo, embora tenha sido só um sonho. Que a gente passe incólume por esse tipo de experiência repetidas vezes ao longo da vida me soa extremamente ingênuo.

2016

segunda-feira, 14 de maio de 2018

Nas cachoeiras

Quem escreve
“entreguei meu coração”
Não faz senão reanimar um órgão parado.

Há locais de concentração.
Um sentimento vago, generalizado
a tristeza
precisa ser localizada

Frost fala de cicatrizes do corpo-e-alma
e Marvell de uma alma tão longa
que empala o corpo. Tem ainda 
quem consegue dizer nada 
sem lotar textos com corpos.

Não, não separo mente e corpo
como faziam os inventores da lâmina
da pólvora e do Geist.

Não é nenhum instrumento de laboratório 
nem um juiz pedindo reintegração de posse
 quem diz o meu corpo.

Mas quem tem o corpo marcado
sabe que a alma, atrasada, vem depois. 
Somos vítima de fofoca, eu e você 
e toda essa horda de decepados.

Eu só queria descansar com você 
na rede do espírito do pensamento mítico-científico 
e conversar sobre pesquisas na área de humanas
enquanto as cachoeiras fazem

Geisteswissenschaften
Geisteswissenschaften

segunda-feira, 23 de abril de 2018

Literatura e escapismo

Kenneth Burke disse há muito tempo: Literatura é [nada senão] equipamento para a vida. É preciso estar equipado quando se viaja e também, talvez principalmente, quando não se sai de casa. Uma vez, anos atrás, quando ainda viajava, pedi indicações de livros de ficção que tivessem a ver com o lugar aonde eu ia. Então uma pessoa me disse: ler em viagem é perda de tempo e dinheiro, é preciso aproveitar os lugares. Sempre me lembro disso, e me lembrei hoje, ao esbarrar nesse trecho de Alice Munro: “Odiava quando usavam a palavra fuga para se referir à ficção. Podia argumentar, e não apenas de brincadeira, que a vida real é que era uma fuga.” Desato agora esse nó. Invejo quem, munido só da sua pessoa, sua carcaça e pensamentos de sempre, tiques e velharias, consegue acreditar estar bem equipado. Talvez esse seja um aspecto do turismo: se desequipar de tudo para acreditar ir ali mudar rapidinho de vida. De todo modo, nem é preciso fugir para tão longe. Sem equipamento é fácil ser turista até na própria cidade, na própria casa, no próprio corpo.

domingo, 25 de fevereiro de 2018

poesia e dinheiro


Uma alucinação bem carioca.
Toda palavra
de todo livro de poesia contemporânea
que abro
é feita de dinheiro.

Essa jovem poeta
acaba de publicar seu primeiro livro
e terminar o segundo.
Longe dos trens
onde o mapa é o território
onde tudo já foi nomeado e tudo é familiar
faz dos bairros da costa sul
ilhas desconhecidas uma antiga carta náutica

Num bar em Botafogo, centro das atenções,
Perde o equilíbrio,
Ri, cambaleia e me confidencia
não me sinto feliz como deveria

Mas ao publicar seu primeiro livro
Salta na Central do Brasil.
Vai pegar um trem pela primeira vez
ramal Japeri
o maior e o que mais a afastará
do teatro do mundo.

No meio da multidão da Central
sorri para não se destacar.

Na janela do trem a paisagem
é marrom-tijolo
Será o mesmo céu?
Inseparável do azul do mar
aqui ele se aparta bem da terra
que judia.

Vai em pé como se dançasse
uma dança desajeitada no meio do vagão.

E se a estranheza que tanto busca
não viesse justamente
de coisas bem familiares?

Passou uns minutos em Deodoro
e voltou a Botafogo.
Na cafeteria da livraria
relaxa os músculos
e o mundo se desdobra como uma carta náutica

O dinheiro
nasceu como figura de linguagem:
a cédula era a metonímia
para o ouro enterrado no subterrâneo do reino.
Livre da ganga material
o dinheiro reencontra suas origens
na poesia. Ambos valem por si.

Poesia brasileira contemporânea
e sua relação com o Capital no século XXI
simpósio na PUC-Rio
segundo semestre de 2020.

quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

Hipster com pau de selfie

É verdade.
Quem olha poderia jurar
que é um professor de História
no Forte de Copacabana.

Olhando gravemente o mar
por onde entrou Villegagnon
e os morros que já não mostram
Jean de Lery entre os Tupinambás.

Um naturalista da expedição
de Langsdorff.
Um escriba da embarcação de Villegagnon
Um comunista levando tiro.
Um professor de História do cursinho.
Seu homem ideal.

Da mureta à Guanabara aponta uma luneta
Ou uma espingarda ou uma espada
É guerra aos banhistas, ao passado
à nossa alma.

Quero saber quem fortificou o forte em História
e a pendurou num museu.
Aqui a foto dele
e adeus.

(Forte de Copacabana, 2015)





































terça-feira, 2 de janeiro de 2018

Leitura de ficção versus leitura de feeds e timelines

Por que ler ficção causa alegria e ler feeds e timelines causa, principalmente, tristeza?

Enquanto quase se convencia da razoabilidade da defesa de Jesus, Pôncio Pilatos obedecia de modo automático ao poder do Estado, isto é, lia mentalmente um feed infinito de leis. Jesus representou para Pilatos a possibilidade de escapar do sentido pronto, autoritário, das leis. Foi ignorado. Ao condenar Jesus, Pilatos, que já sofria com uma enxaqueca terrível, foi então acometido por uma tristeza inexplicável. O leitor de feeds e timelines é acometido pela mesma tristeza. Ele quer desviar os olhos do feed assim como Pilatos desejou secretamente que Jesus dissesse a coisa certa para salvar-se (e salvar Pilatos). Dedos e olhos continuam rolando informações assim como a boca de Pilatos emitia a sentença de enforcamento* mesmo enquanto sua alma, que não acreditava possuir, gritava por socorro.


Recentemente, durante uma dessas sessões de rolagem morosas e despropositadas de timelines, me deparei com uma thread no Twitter sobre como estudiosos tendem a reprimir a presença marcante da vulgaridade na obra de James Joyce. Dizia o cara que Finnegans Wake, em seu aspecto mais elementar, seria a história de um pênis numa vagina. Mal terminei a thread e continuei a rolagem.

Trinta tuítes depois, eu estava irritado. Finnegans Wake pode ser reduzido a qualquer coisa que se queira, e um pênis numa vagina é só uma imagem do Começo. Vulgar é arriar as calças durante o jantar, não algo que James Joyce tenha escrito. Com um esforço de concentração, larguei a timeline e pensei: dar atenção a essa suposta vulgaridade, sequer utilizar essa palavra, é ignorar que Joyce estava no ramo de implodir hierarquias e oposições: épico e dramático, literário de não-literário, narração e ação, vulgaridade e o que quer que seja seu oposto. Ou seja, implodir a memória RAM da Literatura tornada atividade automática em seus escritores sob a forma de convenções literárias. Implodir não no mundo (para isso temos as lacrações), mas como efeito estético de leitura.

A contínua rolagem havia me impedido de processar uma das informações que são o objetivo superficial e enganoso das timelines, e causado uma sensação de esquecimento, irritação e anestesia. Feeds e timelines, em sua experiência ideal de rolagem infinita, promovem não “sobrecarga de informação”, como diz o clichê, mas sim tédio e vazio, porque promovem esquecimento. Do ponto de vista de uma timeline, é bom que esqueçamos todas as informações, para que tenhamos a eterna promessa de que a próxima nos salvará.

Há uma máquina de anti-esquecimento: ela se chama Ulysses (com seu “leitor ideal com uma insônia ideal”, em quem Borges moldou seu Funes, o memorioso). O livro se passa do lado de dentro dos altos muros de um único dia. Na vida, não é difícil lembrar, à noite, de algo que se pensou de manhã. Mas quando lemos um pensamento banal na página 20, que então é lembrado por outra pessoa só ao fim do dia, na página 800, aí tem-se uma ideia do funcionamento da máquina. Por meio de uma engenharia de informação única, Ulysses esgarça a memória. Uma lembrança de hoje de manhã chega com a mesma carga que uma lembrança de dez anos ou dez séculos atrás.

Enquanto eu lia os argumentos do cara sobre Joyce, cuja matéria prima é esquecimento e informação (de um dia específico, de um localização geográfica específica, constituindo um sistema-fechado infinito), a timeline do Twitter executava em mim, como se eu fosse um aplicativo, esquecimento e informação. Esquecido, demorei para ligar os pontos.

A leitura de ficção, em geral, também depende do esquecimento. É um acúmulo de experiências que vão sendo estocadas linha por linha, e em seguida esquecidas, retidas apenas em resíduos distribuídos num fluxo ininterrupto de experiência e memória. Ao final, o que esquecemos retorna com força e dá o efeito único e particular de toda boa leitura, e nos sentimos vivos.

Feeds promovem, às vezes, alegria, boas piadas, e frequentemente tristeza. E não só por causa de tanta notícia ruim, mas porque lê-se uma notícia ruim e já passa-se a outra. Assim como a ficção, a leitura de feeds e timelines também depende do esquecimento. Mas ao contrário da ficção,  há algo de morte da alma em esquecer duas horas de informação sobre, por exemplo, notícias graves e importantes, que demandam de nós posturas igualmente pertinentes, graves e importantes.

A ficção executa em nós, por meio de progressivos esquecimentos, experiência e vida. Já a timeline infinita, com informações do mundo cruel, nos transforma em aplicativos manuseados por algoritmo. Não querendo perder notícias de tais e tais assuntos, confecciono uma timeline, adiciono e deleto usuários. Nesse mundo reduzido, me posiciono de acordo com o algoritmo que me mostrou o mundo reduzido ao meu entendimento imediato. Jogo o jogo da timeline, deslizando infinitamente, e esqueço do que está na minha frente, como Pilatos com um feed na cara, uma enxaqueca dos infernos, e fico raivoso e triste.



*Tal como a história é contada em "O mestre e Margarida", de Bulgákov