Um ensaio meu sobre Maus: história de um sobrevivente escrito há uns bons três anos (por isso o ligeiro deslumbre com as possibilidades do meio). Ressoa contra a insignificância do meu nome a presença de ilustres como Milan Kundera, Kafka, Alan Resnais, Jean Cayrol, o Talmude, o Holocausto. Ele tem só 7 páginas.
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Em meados de 2011, surgiu na Internet uma imagem na qual o escritor
americano David Foster Wallace aparece como se inscrito num vitral de igreja.
Sobre sua cabeça, uma auréola. Uma mão solene erguendo um lápis, a outra
descansada com um livro. A imagem veio à tona na época do lançamento do romance
póstumo “The Pale King”, e faz parte da crescente santificação que sofre a
figura do autor. Wallace é normalmente pintado como o homem que não só mostrou
a totalidade do Zeitgeist, mas apontou maneiras de viver bem nele. Difícil é
distinguir se já havia no coração dos leitores alguma ansiedade premonitória,
como se aguardassem a vinda de um santo, ou se foi a obra que a construiu, da
mesma forma que um escritor constrói seus predecessores.
“Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo”, a primeira
coletânea de ensaios do autor a ser traduzida entre nós (pelos escritores e
admiradores Daniel Galera e Daniel Pellizzari), oferece, nas palavras de James
Wood, a possibilidade de assistirmos ao Zeitgeist “atracando-se consigo mesmo,
em todas as suas confusões necessárias”. O leitor encontra ensaios e
reportagens dos mais variados aspectos da vida contemporânea. Um núcleo
temático pode ser encontrado num personagem do livro de contos
"Oblivion". O personagem, um jornalista, define o principal conflito
da vida americana como “o conflito da centralidade subjetiva - a ideia de que
somos o centro da nossa própria vida - contra o reconhecimento da nossa
insignificância”. Seja num cruzeiro de luxo (“Uma coisa supostamente divertida
que nunca mais vou fazer”), numa feira agrícola (“Ficando longe do fato de já
estar meio que longe de tudo”), o conflito é desenvolvido em escaladas por vezes
líricas, agoniantes, porvezes cerebrais, sempre pelo Wallace
narrador-personagem desses ensaios.
Parte da tradição literária norte-americana praticada por J.D. Salinger,
Thomas Pynchon, Don DeLillo, e levada ao extremo em Wallace, é a narração autoconsciente:
de si mesmo enquanto americano médio tentando fugir de sua condição, de si
mesmo enquanto um declarado não-jornalista reportando, de si mesmo enquanto
pensa tudo isso. Por exemplo, no ensaio que dá título a antologia, as
expectativas de Wallace, ao ser escalado para reportar sua experiência em uma
feira agrícola, são de encontrar uma visão romântica do campo, um idílio de
celebração de colheita. Mas a feira acaba revelando-se um aterrorizante parque
de diversões, uma outra manifestação do turismo capitalista, que promove o
“individualismo massificado”, que macula a “própria imaculabilidade [local] que
se foi experimentar”. Através do papel de americano médio meio ingênuo de
Wallace (ele diz que a voz adotada pelo narrador dos ensaios é a de alguém “um
pouquinho mais estúpido do que [ele]”), como se estivesse tendo contato com a
experiência de massa americana pela primeira vez, o leitor presencia a agonia
da consciência individual ao ser exposta à diversão desenfreada.
Em dado momento desse ensaio, Wallace recorda-se da infância, quando ainda
havia a ilusão de que o mundo inteiro existia só para estimulá-lo e precisava
dormir com a luz acesa, pois se ele a apagasse, o mundo apagaria junto. No
final, Wallace assiste a um homem sendo levantado por uma grua giratória no
alto de um brinquedo, diante de americanos sufocando de tanto rir, e reflete que
não mais consegue sustentar essa ilusão. Isso dispara uma epifania: sua
consciência refugia-se em si mesma para se proteger do espetáculo grotesco, e
“o mundo se apaga como uma luz”. A outra imagem, não explicitada, sugerida após
a última página como um final alternativo, é a de uma massa de adultos
infantilizados.
A sensibilidade de Wallace é sempre atraída pelo subtexto cultural
inscrito nas experiências cotidianas de uma cultura, através das quais ela
revela suas engrenagens. No famoso ensaio sobre as diversões promovidas por um
cruzeiro de luxo, Wallace relata que a principal atividade proposta pela viagem
não é a diversão desenfreada, nem a “difícil decisão de quais entre as
infinitas formas de diversão escolher”, mas sim o gerenciamento da experiência da diversão: o passageiro não precisa
fazer nada, nem se preocupar com a experiência, tudo será gerenciado para ele.
Sempre sofrendo na pele, Wallace mostra os custos humanos e psíquicos de não
ter que pensar em “Absolutamente Nada”: garçons tiranizados pelos chefes do
navio, "Sorrisos Profissionais" estampados na cara de funcionários
que preferiam que ele não estivesse ali. O “retorno ao útero” que é o cruzeiro
de luxo acaba só tornando mais insuportável a volta para o “mundo real”, onde
decisões tem de ser tomadas na velocidade do batimento cardíaco. No final,
outra epifania, quando a mente de Wallace percebe num espetáculo de hipnose a
síntese insuportável do gerenciamento da vontade alheia, e por conseguinte de
uma cultura que promove o esmagamento, via anestesia, da consciência ativa, do
"eu" que precisa existir e decidir.
O estilo hiperdescritivo de Wallace é informado por um tipo de realismo:
a sensação de que sua capacidade de observação não deixa passar nada. Assim, no
ensaio “Federer como experiência religiosa”, uma crônica esportiva misturada
com jornalismo e ensaísmo, sua “tese” é demonstrar a literalidade dessa experiência
religiosa. Wallace não reflete, mas constrói essa experiência, por meio da
emulação de um constante sentimento de “tomada de consciência”. Erich Auerbach
escrevem em “Mímesis” que o estilo de narração de Montaigne era se demorar em
cada mudança de estados de maneira a narrar os diferentes estágios dessa
mudança. Por sua vez, o Federer de Wallace, paradigma da Beleza num esporte
atualmente centrado na força bruta, aparece na descrição das microdecisões
inconscientes do tenista (nas quais repousaria sua famosa genialidade). A
literalidade da experiência religiosa acontece quando os muitos temas plantados
separadamente ao longo do texto convergem numa epifania abrupta, na qual a
consciência é finalmente subjugada por uma Natureza que é capaz de produzir ao
mesmo tempo a improbabilidade de um garoto de dois anos sobreviver a um também
improvável câncer - e Roger Federer.
As epifanias utilizadas por Wallace em vários desses ensaios são uma
versão Wallaciana das utilizadas pelo James Joyce dos contos, isto é, o momento
onde a ação é interrompida logo antes do clímax, e o final projeta-se e
potencializa-se na imaginação do leitor. Nos ensaios, elas assumem duas formas.
Uma delas é a sensação da consciência como um animal que sofre uma lesão e se
recolhe, acuado. É uma maneira de Wallace ensaiar, precisamente, a derrota da
consciência ativa, que circunscreve o mundo, para o solipsismo, a ideia de que
o mundo não existe fora da consciência. Não é a toa que alguns dos ensaios
terminem justamente com a saída de cena da consciência: nada resta do mundo, logo
nada mais a ser relatado.
A outra forma epifânica tem sinal positivo. É o caso de Federer, em quem
Wallace identifica muitas das qualidades físicas e espirituais que a cultura
americana tenta eliminar. Há uma espécie de elogio à natureza (ou metafísica),
misturado com a resignação da consciência a essa natureza (da qual ela faz
parte, afinal). “A reconciliação do ser humano com o fato de possuir um corpo”,
nas palavras de Wallace. Depois de vôos, mergulhos e arcos capturando os
menores detalhes de uma partida de tênis, das câmeras de TV, e dos
espectadores, é como se a consciência de Wallace aterrissasse sobre
Roger Federer e contemplasse, num instante derradeiro, as diversas forças
invisíveis que agem sobre o ambiente, ao redor de e contra Federer.
No fim, a constante “tomada de consciência”, as páginas e páginas de
longos parágrafos, digressões, notas de rodapé dentro de notas de rodapé,
exaustão mental e estilística - tudo isso não é nada além de uma forma de
resistência mental, de prestar atenção. Ainda que alguns desses ensaios sejam o
palco onde é ensaiada a vitória do solipsismo, eles acabam também
oferecendo o outro lado: após a leitura, o leitor sente portas se abrindo,
caminhos liberados, uma saída para esse “reino do tamanho do nosso crânio”.
O impacto final de todo o maximalismo exaustivo do autor numa única
imagem libertadora é o mais próximo que o êxtase estético chega de tocar o
religioso. Mas não é obra de um santo. Ela não nos ensina a viver. A moralidade
na obra de Wallace é inseparável de seus efeitos estéticos, e não e preciso muito
esforço para perceber que seus valores se autodestroem quando transformados em
prescrições, da mesma forma que algumas partículas frágeis são destruídas ao
terem suas individualidades distorcidas pelos próprios fótons que tentam
apreendê-las. Se algo, a obra de Wallace mostra do que a literatura - e só nos espaços onde ela acontece - é capaz.
você deveria continuar escrevendo.
ResponderExcluirobrigado anônimo ou anônima gentil.
Excluircontinuar eu continuo, só não consigo imaginar um blog (o meu blog) como um veículo apropriado.
é tão raro um comentário aqui que eu fico impelido a perguntar quem seria você.
abraço (:
Não sou o anônimo em questão, e apesar de parecer muito topete pra quem acaba de descobrir o blog, concordo com ele. Aos trancos e barrancos, mas o blogger continua sendo bom, e veja só, nem é de todo deserto.
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