Tentativa de interpretar, ou reescrever, ou o que seja, com a ajuda de uma desleitura de Gregory Bateson, esse relato sobre bipolaridade, escrito por Helena Gayer e publicado na revista piauí de dezembro de 2014.
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A. Pulemos de um ponto de vista a outro, de uma perspectiva a outra: toda situação intracelular corresponde a uma situação sociocultural. Costumo andar por aí acreditando que meu sistema celular é controlado, autorregulado, e portanto possuo uma tendência estressante a andar na linha (mas não sem células protorevolucionárias em atividade às quatro da manhã). Talvez eu não pareça com essa mulher justamente porque minha vida intracelular foi standartizada com sucesso, tanto pela medicina quanto por todo o resto.
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A. Pulemos de um ponto de vista a outro, de uma perspectiva a outra: toda situação intracelular corresponde a uma situação sociocultural. Costumo andar por aí acreditando que meu sistema celular é controlado, autorregulado, e portanto possuo uma tendência estressante a andar na linha (mas não sem células protorevolucionárias em atividade às quatro da manhã). Talvez eu não pareça com essa mulher justamente porque minha vida intracelular foi standartizada com sucesso, tanto pela medicina quanto por todo o resto.
B. Standartizar é padronizar. É o bom e velho dispositivo, um sistema de notações, comandos, repetição de padrões e regulamentos entrópicos visando o controle de um sistema, só.
C. No momento das crises a autora sofre uma injeção de vida e sexualidade. À essa intrusão descontrolada de hormônios segue-se imediatamente sua contraparte: uma profusão de imagens e narrativas reconhecíveis, todo um modelo de aventura e romantismo que se assenta sobre ela como uma roupa provocante vestida com alegria.
D. Sentimentos e sensações são mensagens que um sistema envia para comandar e regular transações entre corpo e ambiente. Sinta isso e aja assim. Sinto amor por você, mas você é um elemento no sistema de comunicação que se impõe entre nós, estou preso a um ponto de vista inumano e impossível, que no entanto me consola. Sou um “romântico”, a função de um ato de tradução entre línguas diferentes.
E. Clichês românticos levados a sérios, se mais nada porque são realmente sérios. O submundo, o inferior, a camada renegada pela história e da cultura e da sociedade oficiais é para onde a autora e seu corpo são impelidos aventurosamente durante as crises. As diversas evocações e invocações cósmicas de uma força reguladora, talvez nada mais que a expressão traduzida de um corpo inacessível tentando se autorregular, resultam imediatamente em sua contraparte concreta - a polícia - para assegurar que o surto não extravase demais para seu “outro” social.
F. O "dispositivo" é sujeito a formas de vidas que, entre si, não falam a nossa língua. Segundo muita gente, a linguagem intracelular é (apenas) a linguagem da informação. Se, como queria Kittler, toda informação é simbólica (no sentido de notação, inscrição, sem significado alocado), o mundo só se apresenta carregado de significado àquele que possui vida intracelular desrregulada, (que escapou à simbolização – standardização e catalogação da medicina). O problema, como o relato deixa claro, é que o mundo carregado de sentido e beleza é, principalmente, perigoso, e de uma maneira não-filosófica. O impulso desbravador levou a autora a situações socioculturalmente ruins. Inclusive, a exposição desses perigos é um dos mecanismos que valoram o relato. O fato de um cachorro vira-lata na praia às três da manhã se apresentar como a destilada encarnação do Mal contra a qual a autora precisa lutar, ou os relatos de quase violência sexual, são algo como uma “retórica da imanência”, a linguagem com que o mundo à flor da pele se articula, o xingamento do “halo brilhante das coisas”. O fato de que é preciso um pouco de padronização para funcionarmos é como se fosse um ponto de fuga de merda numa pintura bonita.
G. O fantástico da situação toda é que, sob certa análise, o corpo, o delírio, o surto poderiam facilmente representar o aspecto revolucionário, o buraco no sistema que permitiria a entrada do que lhe é estranho. O problema é que a teleologia, do ponto de vista de uma narrativa de superação, é a da reabilitação. No fim, o drama se revela uma comédia, e os velhos gêneros teimam em ser úteis, apesar da crítica meia boca. O telos da comédia enquanto gênero nunca foi nada além do mecanismo de reintegração do heroi no seio da sociedade. Da mesma forma que nossos aparelhos digitais são, do ponto de vista da história militar, um acaso, também a comédia faz rir sem querer.
H. Embrenhar-se em perspectivas e pontos de vista. O fato de eu ler como literatura o relato da autora se deu porque essa literatura é a forma da coincidência, o corpo improvável que a experiência do surto tomou para transmitir verdade e valor. Literatura-sem-querer, botões mágicos escondidos no universo como os de um controle de videogame, pressionados por alguém em frenética desarmonia com a sequência esperada, causando sem querer um rombo no céu.