Esse texto é sobre esse vídeo doidão aqui.
"Somos
um bando de lunáticos voadores para quem a gravidade é completamente opcional.”
Assim o redator do Gizmodo apresenta esse vídeo, “o vídeo mais doidão que você
vai assistir hoje”. Essa apresentação é quase melhor que o vídeo em si. Porque
é gostosinho nos imaginarmos assim. Apesar de tudo, temos ao menos isso para nos
unir. A Terra uma enorme rave onde vive um povo cujo imaginário coletivo
subsiste do escambo de diversão e vertigem. Mas um povo gregário, que aceita o
diferente – este implicitamente sisudo, entediado, um burocrata das galáxias
saído de Douglas Adams.
Uma
cultura esportiva ou festeira que expeliu um tratado naturalista – essa seria
uma boa hipótese, uma hipótese mítica, originária, onde colocar o cara do
Gizmodo. Um naturalista-mordomo barra mestre-sala nos apresentando uma cultura
alienígena em choque com a essência inequívoca festeira e vida louca da humanidade.
O vídeo um cartão de boas vindas lançado no espaço sideral, destinado aos pobres
coitados desprovidos de gravidade, essencialmente inaptos à experimentar a nossa
diversão cultural, em cuja base está o perigo de cair.
Somos doidões e cagamos pra gravidade chegaí
alienigena.
Estamos
ainda na antecâmara, rodeados de expectativas para melhor absorvemos a experiência
do salão principal, esperando o elevador com a voz sexy que listará as belezas
do lugar que veremos já já com nossos próprios olhos. Não há como receber a
experiência, em forma de evento, sem uma pequena mediação. A informação precisa
da redundância essencial à toda mensagem (e a toda cultura): a social que
precede a festa. Beber antes de sair para beber. NERVO no iPod a caminho do
show do NERVO. Memórias são evocadas, a experiência direcionada, rimos da
expressão cotidiana doidão manifesta
num contexto inesperado, já sabemos do que se trata. Estamos no ponto. Preparados para assistir a algo radical – a
Humanidade?
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Lá
atrás, em 2004, quando estávamos tirando fotos com a novíssima cybershot e
postando no fotolog (foto-log duhr), olhávamos
para as fotos e víamos só contexto – amigos engraçadas abusando do cartão de
memória, lugares noturnos preferidos, círculo de tênis all-star, todo mundo
fazendo cara séria em situações inesperadas, fotos em preto e branco capturando
a melancolia da adolescência. Era nossa vida subjetiva que estávamos
reproduzindo. Se você morou em cidade pequena com internet (ainda mais)
sucateada e vida cultural “oficial” nula, isso era tudo que você tinha.
Hoje
a cybershot é pura nostalgia. Só agora, dez anos depois, o próprio nome cybershot, tiro cibernético ou captura
cibernética, adquire sentido pleno – justamente ao mesmo tempo que ela torna-se
representativa da gênese tecnológica da fotografia digital, gostosinha e
tosca como a adolescência ela própria. Todo passado que se mete, por exemplo via
sci-fi, a apontar para o futuro agora presente não tem como não ser tosco, mal feito,
pouco real, artificial. A
artificialidade da representação e a artificialidade da adolescência ganham
equivalência (e autenticidade, principalmente frente a acusações fáceis contra
banalizações tão viciantes quanto o próprio Instagram). É uma espécie de
reconhecimento do passado, sim, como em qualquer narrativa. Nossa como tudo
falso e tosco que vergonha, mas era tão
bom.
Mas
meu ponto é que apenas hoje as fotos tiradas pela cybershot revelam a mediação
tecnológica grosseira pela qual nossa adolescência passou de maneira a ser transmitida
e reconhecida – a qualidade
levemente granulada, o brilho forte demais, a resolução 640x480 quadradona, a
falta de profundidade de campo, tudo planificado. Toda uma adolescência
registrada e carimbada com a marca d’água da marca CyberShot da empresa Sony,
que agora se escancara.
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E
eis a GoPro, a razão de um vídeo desses ser possível. Para criar a empresa, o criador dessa
sinistreza tecnológica diz ter se inspirado no fato de que não podia capturar
imagens de alta qualidade porque os eventos esportivos não permitiam a entrada de
fotógrafos amadores. O shift subjetivista proporcionado pela GoPro equivale a
um shift profissionalizante. O nome é a coisa é a função. Qualquer um pode se tornar um profissional
com a GoPro, não apenas um profissional da imagem, mas um professional da
radicalidade – o aparelho que acoplado ao humano tornará a
gravidade um brinquedo, incluindo quem assiste. Essa é a noção que está sendo vendida, a antessala, a
causa que se quer consequência. Com a GoPro a tecnologia se torna invisível
novamente, e pronuncia a cultura radical, a beleza da humanidade voadora sem mediação. Corpos pulando, corpos
caindo, corpos deslizando. Tudo embalado no ritmo de uma montagem alucinante
enquanto esconde os andaimes, as futuras ferrugens das escadas dos fundos.
É
expressivo que pessoas assistam a esse vídeo e não sintam a mediação, o quanto
de tecnologia que há envolvida tanto na galera brincando com a gravidade quanto
na própria confecção do vídeo. Toda cultura vai pintar a realidade de acordo
com si própria, no caso, a radicalidade, a festa. (E há uma equivalência entre
a sensação da boate, da night, com as radicalidades, como se radicalidade e night fossem imagem e espelho uma da
outra. Enquanto todos dormem, nós vibramos.)
Mas
tudo isso para dizer apenas que a coisa mais fantástica do vídeo está lá pro
meio. Somos continuamente lançados pra cima, e após a escalada de radicalidade chegamos
ao ápice. Aqui em cima tudo treme, tudo
ressoa de significação e adrenalina, e justo aí eis que somos colocados diante da
única cena livre de radicalidade: um senhor de idade com um aparelho
grotescamente tecnológico cobrindo sua visão, como uma caixa com uma tela. Ele vê
algo que o injeta tanta adrenalina que ele abre a boca para gritar e o som é um
som eletrônico contínuo como o rugido de uma máquina no limite de suas forças.
A
montagem é tal que parece que o senhor está assistindo ao mesmo vídeo que
estamos assistindo: a humanidade da qual faz parte, e a cultura da qual já fez
parte, presumivelmente – cultura esta que agora, por causa do corpo envelhecido, só lhe é
acessível na forma de - sim - realidade virtual (feitiçaria para prolongar a vida biológica tão falida do corpo). A cena do senhor não dura nem
dois segundos, o vídeo segue normalmente com radicalidade mais
radical ainda, mas a intermission da imagem daquele velhinho expressa tudo que há para dizer sobre canais de comunicação e transmissão de cultura, e seus usuários.
Se
aquele velhinho está ali, e ele é tão ressoante e tão singificativo, quer dizer
que o vídeo sabe exatamente o que está escondendo – a tecnologia tremenda e que
dá a condição para uma cultura expressar-se e autoreferenciar-se, se escondendo
e se revelando ao mesmo tempo. Sonhos de raves alucinadas noite à dentro
enquanto envelhece o pobre corpo insuficiente do sonhador.