quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

Kafka sobre a psicanálise

Dizes, Milena, que não o entendes. Procura entendê-lo chamando-lhe uma enfermidade. É uma das numerosas manifestações patológicas que a psicanálise acredita ter descoberto. Eu não o chamo enfermidade e acredito que a parte terapêutica da psicanálise é um tremendo erro. Todas estas chamadas enfermidades, por tristes que pareçam, são manifestações de fé, esforços de pessoas infelizes para se agarrarem a alguma base maternal; é assim como a psicanálise considera, por exemplo, que a origem das religiões é exatamente isso que, segundo eles, constitui a origem das "enfermidades" do indivíduo; por certo, hoje a maioria carecemos de um espírito religioso comum, as seitas são inumeráveis e reduzem-se a pessoas isoladas, mas talvez isto aconteça somente diante do olhar dominado pelo presente. 

Não obstante, essas tentativas de procurar um ponto de apoio, que conseguem uma base realmente sólida, não constituem posse isolada e intercambiável das pessoas, porém algo pré-fabricado em sua natureza, algo que continua criando, sempre na mesma direção, essa natureza (e também esse corpo). E esperam curar isso?

Em meu caso é preciso imaginar três círculos, um interior, A; depois o B, depois o C. O núcleo A explica ao B porque esta pessoa deve atormentar-se e desconfiar de si mesmo, porque tem que renunciar (não é nenhuma renúncia, o que seria muito difícil, é somente a necessidade de renunciar), porque não pode viver. (Nesse sentido, por exemplo, não estava Diógenes gravemente enfermo? Quem não teria sido feliz sob a irradiação do olhar de Alexandre? Mas Diógenes rogou-lhe desesperado que lhe restituísse o sol, esse sol grego, terrível, interminavelmente ardente, enlouquecedor. Esse barril estava cheio de fantasmas.) A C, a pessoa ativa, já não se lhe explica nada, apenas recebe ordens de B. C age sob intensa pressão, com o suor frio da angústia (existe outro suor que brote na fronte, nas faces, nas fontes, na raiz do cabelo, enfim, por toda a superfície do crânio? Assim é o de C). De modo que C age mais por temor que por compreensão, confia, crê que A explicou tudo a B e que B compreendeu tudo bem e lho transmitiu bem.

Franz Kafka - Cartas a Milena  (Editora Itatiaia)

terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

WPP

(interlocutores omitidos)

– Eu me achava velho quando escrevi na internet anos atrás:
“Sofra, mas sofra logo, antes que existam contas a pagar”

Quando sofrer era na internet
Ou para a internet
Ou diante da internet
“Sofrer”
A diferença entre hoje e então 

Além de não se precisar mais ir ao sofrimento
É que então sofria-se, por assim dizer, 
De forma desengonçada e espaçosa.
E hoje, justamente quando ela é onipresente e onisciente,
Eu começo a senti-la como um mero objeto
Que se usa ou não.
Um troço que existe no mundo assim como caneta e cortador de unha
Que se usa ou não.
E meu sofrimento na Internet sai espaçoso e desengonçado,

Um estagiário precarizado, grisalho
Batendo ponto na Internet.
Aqui, adolescentes são os funcionários do mês.

– Já que você não quis vir jantar comigo, 

Prometi a mim mesmo que comeria sozinho. 
Realmente sozinho.
Mas cá estou, digitando essa mensagem.
Na mesa ao lado, uma moça mexe no celular.
Onze da noite e ela com celular e coca-cola e um prato de peixe 

Intocado,
E ela chorando com os polegares como se jogasse Game Boy.
Afasto esse climão pré-fabricado de solidão urbana
Quando um senhorzinho com camisa da CBF começa a gritar
 putaria 
Na calçada, resolvendo meu problema.
Signos de solidão urbana engolidos por signo maior.
O mundo deu um passo para trás
E você aguente o textão.

– Tem-se tentado entender o Eu na internet com jargões paulistanos
Marketing Pessoal, Social Media
Todo mundo se vendendo o tempo todo
Se é de graça, você é o produto
Assinamos todos um pacto 
em troca de existência e narração
E tudo o mais.
Que seja, mas para existir
Tem que saber mostrar a sua irrelevância no bom sentido
No sentindo engraçado
No sentido internet
O que acontece na sua vida offline é irrelevante
Quanto mais deprimidos mais internet, sim.
Mas tem que ter tem e tem que pá.

– Não aguento mais peixe morto. 
Ser ignorado me faz pensar em cartas. 
Uma carta é lenta e lúdica, enquanto nós somos imediatos,
Você disse uma vez.
Olhe uma carta por muito tempo 
E a nossa troca parecerá ficção científica, realmente.
Mas carta era ponte entre alma e texto.
(Ainda que essa chuva nos iluda com miragens de pontes sob nós)

Enquanto nós nos escondemos. 
Na carta, esconder-se custava caro.
Aceito que tenha havido quem preferisse não atravessar a ponte 
Parar no meio do caminho, encostar na beirada 
E contemplar as águas correndo lá em baixo
Feito um suicida.
Uma vida escrevendo mensagem de texto

Retirando do bolo de traumas de infância
Estratégias e técnicas de desvio de atenção,
Como se obrigasse seu mensageiro a atravessar o Império
Carregando notícias falsas e incendiando pontes.
Como não se sentir esvaziado,
Sugado de vida, de alma
Depois de uma vida sabotando pontes
Com precisão militar?
É esse o desperdício.
Não é o tempo, é isso que se perde.

– Olha, difícil saber.
Achei esse um bom parâmetro, aliás:
Ela sofre na internet ou não?
Tempo!
Ela posta sofrimento e pede sentimento
Ou posta felicidade na internet?
Felicidade é sempre mais sutil

Em se tratando de alma.
Porque a internet vira a ponta de um iceberg
Que por descomunicação e arrogância esbarra em você
Como ingenuidade, tosqueira.
Hoje, que Internet não é feita por curadoria própria,

Erguida nas adjacências da própria alma? Não a sua.
Ela, não sei se sofre, pois não posta.
Tem a vibe, mas não posta.
Difícil essa idade sofrer sem postar.

- “Escrever cartas é na verdade se envolver com fantasmas; não só o fantasma do destinatário mas também o fantasma de si próprio. Pode-se pensar em alguém distante e pode-se agarrar a alguém que está perto – todo o resto está além das nossas forças. Escrever cartas, por outro lado, significa expor-se aos fantasmas, que estão ansiosamente esperando por isso como famintos. Beijos escritos nunca chegam ao seus destinos; são bebidos pelos fantasmas no caminho. É esse amplo alimento que os possibilita se multiplicar. De maneira a eliminar esse poder dos fantasmas e conseguir alguma comunicação verdadeira entre humanos, foram inventados trens, carros, aviões – mas não adianta mais. Os fantasmas inventaram telégrafos e telefones; estão calmos e mais fortes. Eles não morrerão de fome, mas nós pereceremos."

– Falemos claramente.
Talvez você, seus nervos,
Tenha captado os índices do meu corpo que dispus aqui.
Assim como achei que houvesse processado os teus.
Mas estamos nos domínios do fantasma. 

Não me peça mais isso.
Na idade média, signos mágicos eram inscritos em papéis
Que, ao serem ingeridos, curavam doenças.
Comer um signo é absurdo?

Por acaso se come alguma outra coisa?
Papéis, mágicos ou não, são fáceis de colocar na boca e engolir.
Se isso te parece um absurdo
Que dirá de nós, que nem comer inscrições do nosso corpo

Nós podemos?

– Ingenuidade, sim, 
Porque no fundo a sua raiva diante dessas pessoas,
Tão ingênua quanto a ingenuidade que você critica,
É porque elas não dominam as ferramentas tão bem quanto você. 
Mas quem domina quem? 
Você as está usando ou sendo utilizado? 
Daqui, o que vejo é o seguinte:
Você foi obrigado a dominá-las. 
Percebendo desde cedo que viveria para sempre aqui,
Foi preciso aprender a apertar os botões da maneira certa
Unicamente para que a interface respondesse
Mais ou menos de acordo com a sua vontade. 
E foi longo o aprendizado. 
Sua adolescência, você não tem coragem nem de lembrar. 
Antes de reclamar, pense nas suas origens, 
Pense no seu aprendizado,
No quanto você foi completa e irreversivelmente 
dominado.