Uns dias depois da morte do meu avô, comecei a ter sonhos lúcidos. Ontem, quando acordei de um cochilo, ouvi a porta da sala abrir. Eu estava deitado na cama do quarto e me inclinei pra ver quem chegava lá. Vi, lá longe, na sala, meu avô entrando com sacolas de supermercado. Nos últimos meses, já doente, ele passou um tempo aqui em casa. Mas ele era teimoso e vivia saindo. Ele era alto, magro, bem corcunda, desde a adolescência uma imagem do futuro para mim, curvado no computador desde sempre. Quando o vi com seu casaco cinza e as sacolas, pensei, estou sonhando. Ele acabou de morrer. Estou sonhando e sei disso. Isso significa que vai dar trabalho acordar, e acordar vai ser desagradável e doloroso, não só o ato de voltar à vigília mas também o de lembrar, depois, que meu avô está morto. Pensei tudo isso durante o sonho, enquanto ouvia as sacolas plásticas. Mas como eu poderia ter certeza que era um sonho? O sonho comprovou-se definitivamente como tal quando vi minha avó, falecida há muito mais tempo que meu avô, entrar em casa. Minha vó é velha personagens dos meus sonhos. O fato de eu vê-los pela fresta da porta evocava uma infância da qual me envergonho, quando eu me trancava para me isolar de reuniões familiares e via tudo pela fresta da porta do quarto, época em que presenciei minha avó lentamente definhando numa cadeira de rodas por uma doença paralisante e cruel. De todo modo, normalmente, nos sonhos, eu acreditava na minha vó, quero dizer, quando eu a via eu nunca sabia se estava sonhando, de modo que eu sempre acordava achando que sua morte é que tinha sido um sonho, que tudo não tinha passado de um sonho, ufa. Mas dessa vez o sonho era lúcido, e eu sabia que estava sonhando, e agora que ela entrou, eu pensei, só Deus sabe onde isso vai dar, e a decepção ao acordar desses sonhos com meus avós vivos era tão grande que eu sabia, sonhando, que tinha que dar um fim àquela farsa. Mas havia sempre a ideia de que eu podia estar acordado, e a morte deles é que teria sido um sonho. Então dei início à minha técnica para acordar de sonhos lúcidos: fechei os olhos e comecei a balançar violentamente a cabeça. O balançar da cabeça começou a abalar a realidade do apartamento, o que me confirmou que o alívio que eu havia sentido quando minha avó viva entrou era pura falsidade, puro truque, teatro, palhaçada. O foda da coisa toda é que, quando eu fechava os olhos no sonho, eu sentia vacilar a garantia que depositamos no que vemos e ouvimos normalmente no dia a dia. O sonho é frágil e não suporta um movimentinho de cabeça sem o mundo inteiro sacudir junto, de modo que a vigília — a memória dela que temos durante o sonho — não poderia ser diferente. De todo modo, eu sabia que estava mais perto de acordar porque minhas pálpebras começaram a ficar pesadas. Então — isso era parte da técnica de acordar — eu fazia um esforço enorme para abri-las. Isso era extremamente difícil, mas quando eu finalmente conseguia abrir os olhos, lá estava meu avô, na sala, remexendo nas sacolas plásticas. Não e possível. Eu devia estar acordado. Talvez meu avô voltasse da casa lotérica onde ele sempre ia trocar moedas, diligentemente separadas e enroladas em tubinhos de plástico. Ele era funcionário de banco e passou a vida trocando moedas. Enfim, comecei a jogar a cabeça para os lados com violência e a abrir e fechar os olhos para surpreender o sonho com minha atenção vigilante. Mas nada adiantava. Começou o desespero e a taquicardia. A última técnica que me restava era gritar. É o único jeito definitivo de saber em que estado você se encontra, se dormindo ou acordado. Não é fácil gritar num sonho, portanto se você tenta e não consegue, e também não consegue abrir os olhos, está garantido que é tudo uma farsa, um teatro cruel feito encomendado especialmente para você. A maneira de fugir dessa desgraça: abra a boca o máximo que conseguir, até sentir sua cara rasgar. Uma vez que você rasga a própria cara num berro, você sente outra coisa, um alívio, um afrouxar de pressão. Você volta à vigília, pesado, exausto. Ao contrário do sonho, a vigília reconhece seu esforço e, na sua volta, reclama apenas o cansaço e a respiração pesada, como se voltasse de uma experiência traumática, um pesadelo, embora tenha sido só um sonho. Que a gente passe incólume por esse tipo de experiência repetidas vezes ao longo da vida me soa extremamente ingênuo.
2016
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