Receio
que essa seja uma das questões mais difíceis. Cuidado com as metáforas. Devido
ao tempo, livros, papeis, moedas e cavaletes serão aqui considerados
insuficientes, pois a relação mídia-objeto é complicada, toca-se num objeto,
não na sua mídia. Como é a sensação de um número? Portanto, mídia digital. Para
se tocar numa mídia basta conseguir tocar num corpo marcado pela mídia. O
supracitado ‘basta’ possui o mesmo grau de complexidade das frases ‘os iPhones
retribuem a força despendidas pelo olhar’, ‘memória contemplativa convertida em
marketing’, ‘o holograma colorido dá ao cartão de crédito uma intriga
mercadológica’. Os corpos escolhidos pela mídia são facilmente reconhecíveis
por um brilho que consiste em uma aura acinzelada da cor de um iPad quando inicializando,
ou da cor do retângulo prateado semilíquido da touchscreen seccionada no telão do comício de lançamento da Apple. O
brilho induz o observador a um estado de semi-paranóia, pois apesar de ser
claro e brilhante e tridimensional, ele é invisível à olho nu, e floresce apenas
bem acima do ponto onde se encontrariam olhos femininos, cílios confirmando o
vento, que tentam enxergar-se mutuamente. Quando de fato consegue-se tocar no
corpo marcado pela mídia, ocorre a sensação de se tocar na mídia. Mas o que é uma mídia? Uma superfície de realidade
discutível e apenas passível de ser apreendida em termos de recepção simbólica,
como ilustra Justin Bieber. Atentem para o rosto da menina que assiste. Vejam
como Bieber brilha. Um império, um corpo, uma história desaparecem em pura
paisagem midiática. A informação se esconde ao conceitualmente desaparecer no
seu movimento natural – ser (tragicamente) processada, e o conceito de mídia
infelizmente nos refere de volta à seu subproduto, o estigma, a marca da mídia.
Então, apenas para entender a
materialidade da mídia, vejam o decotes, vejam os olhos sombreados. Acabam de deixar
o livro e agora invadem o perímetro do seu foco. Exclua os bancos, as pessoas, as barras de
ferro, o trem. Veja, mas veja apenas a informação.
Evitem processar em conjunto o decote e os olhos e o sorriso contrabandeado
através do livro. Cuidado com: calça jeans, cabelos bagunçados, all-star
surrado, capa do livro, o local fisiológico referido pela franja grudada
na testa por causa do calor. Tratem os olhos que se levantam e o trem que
balança o corpo como relações. A única sensação correta é à partir da metáfora
industrial da máquina emperrada. Cuidado
com o output semântico. Evitem símiles. Não confunda as coisas: o metrô os distribuindo
como informações por diversas ‘estações’ ao longo de um canal é apenas uma
questão de ponto-de-vista, a função lógica de um secretário de transportes com
um mapa. Deixe a informação flutuando exatamente um cubo de quatro dimensões.
Sinta o brilho. Quem é Justin Bieber agora.
terça-feira, 26 de novembro de 2013
quinta-feira, 15 de agosto de 2013
Diário da queda
Mais uma que se perdeu no caminho.
__
Diário da queda é uma máquina simples, altamente eficiente, cuidadosamente construída, cujo design utiliza esteticamente desenhos estilizados de suas engrenagens. Seu funcionamento é parte de sua estética; sua estética é sua eficiência. No romance de Michel Laub, estamos sempre em movimento, sempre indo em frente, – uma ilusão criada pela repetição circular constante de seu funcionamento. Quando percebemos as curvas, é sempre parte do show. Desde o começo o narrador está inserido no, e colocando pra funcionar, o procedimento; não se pretende fora dele, não tem pretensão de criticar sua forma. Elogiar Diário da queda é elogiar o procedimento.
Parte do procedimento são os subtítulos enganosos: “algumas coisas que sei sobre meu avô”, por exemplo, perpassa por diversos personagens, mas quem está mesmo em evidência é o narrador. É sempre sua história que avança, e o avô, assim como o pai e todo o resto, são tragados pela espiral de decadência e raiva projetada pela máquina.
Há uma sensibilidade eficiente para a atividade mecânica de erigir listas, outlines, verbetes, definições – dispositivos enciclopédicos em geral. O romance consiste de notas contendo fragmentos da vida do narrador e da genealogia da família, e a maneira como emerge uma narrativa entre um fragmento e outro é um dos exemplos da beleza da máquina.
O “estilo direto”, combinado à escrita em fragmentos, é como se o narrador precisasse fixar rapidamente alfinetes no mapa da vida que lhe passa diante dos olhos. Há sempre algo de fugidio no fragmento, e, no caso de Diário da queda, isso tem a ver também com o caráter excessivo, over, do significante Auschwitz, cuja região no mapa está repleta de buraquinhos de alfinetes, testemunhas de falsos começos, remoções apressadas.
A importância de Auschwitz para o narrador é bem ilustrada pela noção matemática (ou solipsista; a máquina do romance de Laub é uma máquina mental, repleta de associações entre termos e caminhos falsamente enganosos) de que “nem a pobreza nem a dor são acumuláveis”, que Borges cita de Bernard Shaw na Nova refutação do tempo. É a ideia de que uma única experiência contém toda a experiência do mundo. No romance de Laub, o narrador só consegue compreender imaginativamente a dimensão de Auschwitz quando sofre (e pratica) suas próprias violências. Ao mesmo tempo, o romance se esforça em empilhar citações de Primo Levi de maneira a tentar dimensionar, via acúmulo, o horror. O que funciona tão bem via relativismo é apenas irritante quando há a repetição obsessiva da palavra Auschwitz. O mantra acaba servindo unicamente para expressar a ideia de que há um mantra na cabeça do narrador, de que o significante Auschwitz o persegue.
Diário da queda encena a possibilidade da transfiguração genealógica do horror em formas mais banais de violência. Há o primeiro nível da experiência: o contato direto do avô com Auschwitz. Para o narrador, o fato do avô não escrever sobre Auschwitz em seus cadernos/enciclopédias idiossincráticas é reflexo da incomunicabilidade deste horror: os verbetes do avô são todos relacionados a como o mundo deveria ser de modo que eu consiga ficar sozinho sem ser perturbado. Há o segundo nível, o pai, que, depois do contato com os cadernos do avô, torna-se o pontífice contra o antissemitismo, o guardião da tradição judaica, sempre em risco de desaparecer, sempre renascendo e prosperando apesar das repetidas adversidades. E há o terceiro nível, o filho, o narrador, que resiste às propagandas do pai, que se rebela, que quer ter o direito às próprias experiências, que se apropria pateticamente dos sermões do pai e torna-se ele próprio gerador de um novo tipo de violência, movida pelo tríptico vergonha, culpa, raiva. A notícia, anos mais tarde, de que o pai desenvolverá a doença de Alzheimer chega para colocar em perspectiva o valor da permanência de todas essas experiências. Contra isso, aparecem os cadernos de memória do pai, uma tentativa não apenas de preservar as lembranças, mas de limpar os canais genealógicos, de selecionar as memórias que importam para uma vida sem violência. Diário da queda como que que reprime, nas adjacências, esse horror, cuja imagem ideal seria a equação Auschwitz + Alzheimer. A violência aqui é sempre cometida contra uma memória, vide o ato, na opinião do próprio, mais ignóbil cometido pelo narrador: a vingança contra o amigo gói João, realizada na forma de um bilhete profanando a memória da mãe do amigo, morta no parto. A tudo isso, o narrador chama de “inviabilidade da experiência humana em todos os tempos e lugares.”
Com a revelação do quarto nível de experiência, o romance fecha seu ciclo (e abre um novo círculo de possibilidades), e todo o trajeto de Diário da queda adquire outra camada: tornar viável essa inviabilidade. O efeito é impactante e muito bonito: o romance adquire uma fisicalidade, quase a função prática de um manual. De repente, descobrimos que os olhos com que líamos o romance podem ser os olhos de um outro, lendo o mesmo livro que nós, e a leitura que faz esse novo personagem seria uma leitura completamente diferente, que conteria a história de uma tradição passada por um processo de tábula rasa.
Pode-se dizer que um dos pecados de Diário da queda é não ser uma obra-prima. A “função prática” que ele adquire no final é o motivo de sua eficácia, e também o motivo pelo qual ele é incapaz de continuar vivendo na memória. O romance tem essa característica de autocombustão, que é o que o faz funcionar na releitura: ela foi exatamente como da primeira vez, todas as suas partes exatamente no mesmo lugar, realizando as mesmas funções, com sua teleologia renovadora impactante esperando no final. Ele não existe fora da maquinaria. Suas qualidades são seus defeitos. Se existem livros que querem substituir o mundo por outros, feitos de pura linguagem, que demandam revisitações através das quais há sempre algo novo a se descobrir, Diário da queda está satisfeito em fazer parte do nosso mundo comum, onde Auschwitz possui a estabilidade de continuar sendo o mesmo signo complicado de sempre. Esse sentimento confortável de segurança, que emerge no fim, parece minar o mistério necessário para que o romance continue existindo e se desdobrando na memória, adquirindo outros contornos, se revelando e se escondendo intermitentemente. Para uma história tão preocupada com memórias, isso soa no mínimo problemático.
quinta-feira, 6 de junho de 2013
Jean Rhys
Resenha minha no Jornal Rascunho sobre Vasto mar de sargaços, de Jean Rhys, essa mocinha aqui ó:
versão TECNICOLOR:
não se enganem com esse sorriso, a mulher é uma bruxa e escreveu um livro demoníaco: http://rascunho.gazetadopovo.com.br/o-vestido-de-casamento/
quinta-feira, 25 de abril de 2013
Nabokov, Wilson e as contingências do mundo
É de manhãzinha e leio a correspondência entre Vladimir Nabokov e Edmund Wilson, a participação fundamental que Wilson teve na vida de Nabokov, recém chegado aos Estados Unidas , as muitas discussões sobre a língua russa, os desentendimentos divertidos, as dificuldades para ganhar dinheiro com literatura. O blurb na contra-capa: quando os mestres sentam pra conversar carregam o ar com todo tipo de pirotecnias. Sim, é uma maneira talvez inevitável de ler essas cartas, mas minha relação com esse livro foi outra. As menções à doenças sempre aparecem como detalhes desimportantes, um desejando ao outro que melhore logo, que as respectivas família consigam viver bem e que possam se encontrar logo. Isso até o fatídico ano de 1964. Depois, há um hiato de sete anos graças à famosa crítica de Wilson à tradução de Eugene Ogenin de Nabokov. Os dois rompem a amizade.
Mas esses vastos sete anos, no livro, são representado por um espaço normal entre uma carta e outra, o enter apertado duas vezes no teclado do editor, e o cabeçalho da carta seguinte, do ano de 1971, completa essa elipse dramática, esse desdém da tecnologia "livro" com Tempo. A penúltima carta, a de 1971, revela que Nabokov releu toda a correspondência entre eles, ou seja, leu o livro que acabo de ler, e nas suas poucas palavras para Wilson dá pra sentir o coração pesado e a idade avançada, após a leitura dessas cartas que contém quase uma vida inteira, pondo as coisas em perspectiva. Em seguida há a última carta, a resposta de Wilson escrita cinco dias depois, onde ele tenta restabelecer a amizade contando sobre seus projetos literários, mas na verdade ele e sua esposa estão doentes, Wilson sofrera um enfarte e sua mão direita não funciona muito bem. Então, na próxima página, ao invés de uma nota dos editores com informações sobre o falecimento de Nabokov, de Wilson, ou de ambos, páginas e páginas de índice remissivo, onde o leitor pode escolher que parte de uma vida compartilhada ele se sente a fim de rever.
Mas esses vastos sete anos, no livro, são representado por um espaço normal entre uma carta e outra, o enter apertado duas vezes no teclado do editor, e o cabeçalho da carta seguinte, do ano de 1971, completa essa elipse dramática, esse desdém da tecnologia "livro" com Tempo. A penúltima carta, a de 1971, revela que Nabokov releu toda a correspondência entre eles, ou seja, leu o livro que acabo de ler, e nas suas poucas palavras para Wilson dá pra sentir o coração pesado e a idade avançada, após a leitura dessas cartas que contém quase uma vida inteira, pondo as coisas em perspectiva. Em seguida há a última carta, a resposta de Wilson escrita cinco dias depois, onde ele tenta restabelecer a amizade contando sobre seus projetos literários, mas na verdade ele e sua esposa estão doentes, Wilson sofrera um enfarte e sua mão direita não funciona muito bem. Então, na próxima página, ao invés de uma nota dos editores com informações sobre o falecimento de Nabokov, de Wilson, ou de ambos, páginas e páginas de índice remissivo, onde o leitor pode escolher que parte de uma vida compartilhada ele se sente a fim de rever.
Foda-se esse livro. Tomo um suco na cozinha, penduro roupas no varal, tento calcular quanto tempo eu ainda tenho. Da janela vejo uma briga entre duas velhinhas que costumam passam o dia em frente a TV. Berram uma na cara da outra, vai embora, pode ir embora se quiser, tu é uma velha esclerosada, ninguém te quer aqui, deveria morrer logo.
Se fosse possível escrever cartas eu te listaria as escassas possibilidades que ainda me restam num dia desses, nem você nem a internet teriam que lidar com mais um post de blog, e o mundo estaria livre de todas as contingências.
quarta-feira, 24 de abril de 2013
Whosoever is able to see the circuits in the synthesized sound of CDs or in the laser storms of a disco finds happiness
*
1) "Pesquisadores brasileiros criam carro que anda sozinho": a construção da frase como causa do acidente.
2) O jogo de cintura do cinegrafista num momento de tensão: no instante derradeiro ele precisa desviar o nosso olhar (a câmera): a pressão do momento crítico não paralisa o seu reflexo de velar pela estabilidade e normalidade sacrossantas da manhã dos espectadores.
3) O olhar estarrecido de um boneco inexpressivo.
4) A expectativa da aparição do homem que controla o boneco não se resolve. A voz continua sendo a do personagem. O ilusionismo estremece, mas não pode, não deve ruir.
5) O shift entre uma câmera e outra, que filma o boneco assistindo a imagem filmada pela primeira. O espectador não é mais o espectador, que em decorrência de 4) adquire as feições impossíveis do boneco.
6) A linha de som da interferência do microfone sublinhando o clímax suspenso: uma coda expressando os diversos canais oficiais entrando em parafuso, homens diante de monitores brigando uns com os outros, se levantando e jogando seus headphones na mesa.
7) "The sky takes on content, feeling, an exalted narrative life".
egopress #1
- Escrevi uma resenha longa sobre "A morte do inimigo", de Hans Keilson, para a edição de abril de 2013 do Jornal Rascunho.
- Como não tinha avisado antes, vai agora mesmo: fiquei em segundo lugar no I Concurso de Resenhas do Todoprosa, com um texto sobre "Mãos de cavalo", de Daniel Galera. Sim, foi há mais de dois anos atrás, mas é sempre bom avisar que o troço existe, mesmo que a execução me pareça hoje terrivelmente tosca.
sexta-feira, 30 de novembro de 2012
Dois textos
Um ensaio meu sobre Maus: história de um sobrevivente escrito há uns bons três anos (por isso o ligeiro deslumbre com as possibilidades do meio). Ressoa contra a insignificância do meu nome a presença de ilustres como Milan Kundera, Kafka, Alan Resnais, Jean Cayrol, o Talmude, o Holocausto. Ele tem só 7 páginas.
&
*
Em meados de 2011, surgiu na Internet uma imagem na qual o escritor
americano David Foster Wallace aparece como se inscrito num vitral de igreja.
Sobre sua cabeça, uma auréola. Uma mão solene erguendo um lápis, a outra
descansada com um livro. A imagem veio à tona na época do lançamento do romance
póstumo “The Pale King”, e faz parte da crescente santificação que sofre a
figura do autor. Wallace é normalmente pintado como o homem que não só mostrou
a totalidade do Zeitgeist, mas apontou maneiras de viver bem nele. Difícil é
distinguir se já havia no coração dos leitores alguma ansiedade premonitória,
como se aguardassem a vinda de um santo, ou se foi a obra que a construiu, da
mesma forma que um escritor constrói seus predecessores.
“Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo”, a primeira
coletânea de ensaios do autor a ser traduzida entre nós (pelos escritores e
admiradores Daniel Galera e Daniel Pellizzari), oferece, nas palavras de James
Wood, a possibilidade de assistirmos ao Zeitgeist “atracando-se consigo mesmo,
em todas as suas confusões necessárias”. O leitor encontra ensaios e
reportagens dos mais variados aspectos da vida contemporânea. Um núcleo
temático pode ser encontrado num personagem do livro de contos
"Oblivion". O personagem, um jornalista, define o principal conflito
da vida americana como “o conflito da centralidade subjetiva - a ideia de que
somos o centro da nossa própria vida - contra o reconhecimento da nossa
insignificância”. Seja num cruzeiro de luxo (“Uma coisa supostamente divertida
que nunca mais vou fazer”), numa feira agrícola (“Ficando longe do fato de já
estar meio que longe de tudo”), o conflito é desenvolvido em escaladas por vezes
líricas, agoniantes, porvezes cerebrais, sempre pelo Wallace
narrador-personagem desses ensaios.
Parte da tradição literária norte-americana praticada por J.D. Salinger,
Thomas Pynchon, Don DeLillo, e levada ao extremo em Wallace, é a narração autoconsciente:
de si mesmo enquanto americano médio tentando fugir de sua condição, de si
mesmo enquanto um declarado não-jornalista reportando, de si mesmo enquanto
pensa tudo isso. Por exemplo, no ensaio que dá título a antologia, as
expectativas de Wallace, ao ser escalado para reportar sua experiência em uma
feira agrícola, são de encontrar uma visão romântica do campo, um idílio de
celebração de colheita. Mas a feira acaba revelando-se um aterrorizante parque
de diversões, uma outra manifestação do turismo capitalista, que promove o
“individualismo massificado”, que macula a “própria imaculabilidade [local] que
se foi experimentar”. Através do papel de americano médio meio ingênuo de
Wallace (ele diz que a voz adotada pelo narrador dos ensaios é a de alguém “um
pouquinho mais estúpido do que [ele]”), como se estivesse tendo contato com a
experiência de massa americana pela primeira vez, o leitor presencia a agonia
da consciência individual ao ser exposta à diversão desenfreada.
Em dado momento desse ensaio, Wallace recorda-se da infância, quando ainda
havia a ilusão de que o mundo inteiro existia só para estimulá-lo e precisava
dormir com a luz acesa, pois se ele a apagasse, o mundo apagaria junto. No
final, Wallace assiste a um homem sendo levantado por uma grua giratória no
alto de um brinquedo, diante de americanos sufocando de tanto rir, e reflete que
não mais consegue sustentar essa ilusão. Isso dispara uma epifania: sua
consciência refugia-se em si mesma para se proteger do espetáculo grotesco, e
“o mundo se apaga como uma luz”. A outra imagem, não explicitada, sugerida após
a última página como um final alternativo, é a de uma massa de adultos
infantilizados.
A sensibilidade de Wallace é sempre atraída pelo subtexto cultural
inscrito nas experiências cotidianas de uma cultura, através das quais ela
revela suas engrenagens. No famoso ensaio sobre as diversões promovidas por um
cruzeiro de luxo, Wallace relata que a principal atividade proposta pela viagem
não é a diversão desenfreada, nem a “difícil decisão de quais entre as
infinitas formas de diversão escolher”, mas sim o gerenciamento da experiência da diversão: o passageiro não precisa
fazer nada, nem se preocupar com a experiência, tudo será gerenciado para ele.
Sempre sofrendo na pele, Wallace mostra os custos humanos e psíquicos de não
ter que pensar em “Absolutamente Nada”: garçons tiranizados pelos chefes do
navio, "Sorrisos Profissionais" estampados na cara de funcionários
que preferiam que ele não estivesse ali. O “retorno ao útero” que é o cruzeiro
de luxo acaba só tornando mais insuportável a volta para o “mundo real”, onde
decisões tem de ser tomadas na velocidade do batimento cardíaco. No final,
outra epifania, quando a mente de Wallace percebe num espetáculo de hipnose a
síntese insuportável do gerenciamento da vontade alheia, e por conseguinte de
uma cultura que promove o esmagamento, via anestesia, da consciência ativa, do
"eu" que precisa existir e decidir.
O estilo hiperdescritivo de Wallace é informado por um tipo de realismo:
a sensação de que sua capacidade de observação não deixa passar nada. Assim, no
ensaio “Federer como experiência religiosa”, uma crônica esportiva misturada
com jornalismo e ensaísmo, sua “tese” é demonstrar a literalidade dessa experiência
religiosa. Wallace não reflete, mas constrói essa experiência, por meio da
emulação de um constante sentimento de “tomada de consciência”. Erich Auerbach
escrevem em “Mímesis” que o estilo de narração de Montaigne era se demorar em
cada mudança de estados de maneira a narrar os diferentes estágios dessa
mudança. Por sua vez, o Federer de Wallace, paradigma da Beleza num esporte
atualmente centrado na força bruta, aparece na descrição das microdecisões
inconscientes do tenista (nas quais repousaria sua famosa genialidade). A
literalidade da experiência religiosa acontece quando os muitos temas plantados
separadamente ao longo do texto convergem numa epifania abrupta, na qual a
consciência é finalmente subjugada por uma Natureza que é capaz de produzir ao
mesmo tempo a improbabilidade de um garoto de dois anos sobreviver a um também
improvável câncer - e Roger Federer.
As epifanias utilizadas por Wallace em vários desses ensaios são uma
versão Wallaciana das utilizadas pelo James Joyce dos contos, isto é, o momento
onde a ação é interrompida logo antes do clímax, e o final projeta-se e
potencializa-se na imaginação do leitor. Nos ensaios, elas assumem duas formas.
Uma delas é a sensação da consciência como um animal que sofre uma lesão e se
recolhe, acuado. É uma maneira de Wallace ensaiar, precisamente, a derrota da
consciência ativa, que circunscreve o mundo, para o solipsismo, a ideia de que
o mundo não existe fora da consciência. Não é a toa que alguns dos ensaios
terminem justamente com a saída de cena da consciência: nada resta do mundo, logo
nada mais a ser relatado.
A outra forma epifânica tem sinal positivo. É o caso de Federer, em quem
Wallace identifica muitas das qualidades físicas e espirituais que a cultura
americana tenta eliminar. Há uma espécie de elogio à natureza (ou metafísica),
misturado com a resignação da consciência a essa natureza (da qual ela faz
parte, afinal). “A reconciliação do ser humano com o fato de possuir um corpo”,
nas palavras de Wallace. Depois de vôos, mergulhos e arcos capturando os
menores detalhes de uma partida de tênis, das câmeras de TV, e dos
espectadores, é como se a consciência de Wallace aterrissasse sobre
Roger Federer e contemplasse, num instante derradeiro, as diversas forças
invisíveis que agem sobre o ambiente, ao redor de e contra Federer.
No fim, a constante “tomada de consciência”, as páginas e páginas de
longos parágrafos, digressões, notas de rodapé dentro de notas de rodapé,
exaustão mental e estilística - tudo isso não é nada além de uma forma de
resistência mental, de prestar atenção. Ainda que alguns desses ensaios sejam o
palco onde é ensaiada a vitória do solipsismo, eles acabam também
oferecendo o outro lado: após a leitura, o leitor sente portas se abrindo,
caminhos liberados, uma saída para esse “reino do tamanho do nosso crânio”.
O impacto final de todo o maximalismo exaustivo do autor numa única
imagem libertadora é o mais próximo que o êxtase estético chega de tocar o
religioso. Mas não é obra de um santo. Ela não nos ensina a viver. A moralidade
na obra de Wallace é inseparável de seus efeitos estéticos, e não e preciso muito
esforço para perceber que seus valores se autodestroem quando transformados em
prescrições, da mesma forma que algumas partículas frágeis são destruídas ao
terem suas individualidades distorcidas pelos próprios fótons que tentam
apreendê-las. Se algo, a obra de Wallace mostra do que a literatura - e só nos espaços onde ela acontece - é capaz.
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