sábado, 15 de outubro de 2011

Pequena síntese da minha aflição com o filme "Pacific"


Esse trecho é parte de uma coisa bem mais longa que estou tentando desenvolver sobre o documentário "Pacific", de Marcelo Pedroso, feito apenas de imagens gravadas por passageiros (cedidas para Pedroso) durante uma viagem de uma semana a bordo do cruzeiro de luxo Pacific

Por mais que as intenções de Pedroso estejam claras (tem que descer um pouco a pagina), e por mais que as imagens tenham sido cedidas pelos passageiros do Pacific, ainda há algumas questões. Muitos espectadores, dentre eles o crítico Jean Claude Bernardet, além de alguns dos autores das imagens, sentiram-se constrangidos ao assistirem imagens que pertencem a uma esfera tão privada da vida. Elas foram cedidas deliberadamente, sim, porém os passageiros não faziam ideia do que seria feito delas.

A construção final de “Pacific” visa uma ambiguidade. Muitas foram as reclamações de que o diretor havia exposto aquelas pessoas ao ridículo, e algumas delas próprias, ao assistirem o filme, afirmaram o mesmo.  É possível refletir se esse “ridículo” não passa de uma projeção do espectador sobre aquelas imagens, se na verdade não somos nós que estaríamos nos distanciando e nos colocando numa posição privilegiada fora daquele mundo de luxo e excesso, idiotia e constrangimento (ou simplesmente nos deixamos levar pela diversão).

Mas o problema é justamente essa ambiguidade intencional de Pedroso. Não é que ele, enquanto autor e manipulador daquelas imagens, se isente de qualquer responsabilidades sobre elas, e jogue a culpa pela divergência de interpretações no espectador. A questão é na verdade se é possível ou válido (eticamente, sim), se é eficaz utilizar de imagens tão privadas com a intenção de realizar um discurso ambíguo; se a natureza dessas imagens, se suas condições de nascênça suportam o peso retórico que Pedroso tenta injetar nelas. Essas pessoas então teriam suas ações privadas expostas e resignificadas agora dentro de um contexto onde elas praticamente atuam contra si mesmas*, e de forma esquizofrênica (dada a invisibilidade do narrador, de uma suposta inesgotabilidade das imagens). Nessa perspectiva, é fácil entender porque alguns dos passageiros do cruzeiro se mostraram indignados com o filme. E acho difícil culpá-los por isso.

Um exemplo: há uma sequência onde um dos passageiros (o "personagem principal", um passageiro especialmente empolgado em registrar aparentemente cada segundo da viagem. Usei "aparentemente" não por acaso) está filmando seus dois filhos pequenos, uma menina e um menino de seis ou sete anos. As crianças estão brincando na praia. O menino começa a destruir um desenho que a irmã fez na areia. O pai manda o garoto parar, e a menina começa a gritar, um grito que se mistura com risos (mistura tão característica e indissociável), enquanto corre atrás do garoto pela praia, ambos gritando/rindo numa perseguição divertida. A sequência é rápida, mas o ponto de Pedroso parece ser (1) que o pai não intervém, não pára de filmar, é conivente com a crueldade, ou (2) está tão absorvido pela câmera, tão inserido na aura contemporânea (sim) de registro e compartilhamento e autonarrativização imediatas que  ele continua lá, filmando e rindo. A sequência possui um peso todo especial e desconfortante quando inserida naquela lógica narrativa, uma clima ruim, os gritos daquelas crianças reverberam além da conta, e esse peso é a síntese da minha birra. A natureza dessas imagens é a de uma pequena rotina familiar, onde crianças estão sendo crianças, onde a brincadeira/briga foi esquecida antes mesmo da sequência terminar. E, dentro do filme, ela se pretende um comentário, faz parte de uma argumentação maior. E este é o movimento básico do filme. Como injetar significações ou extrair conclusões de imagens dessa natureza? Toda e qualquer tipo de imagem pode ser considerada matéria prima?**

Eu sentiria o mesmo receio de aceitar qualquer argumentação que utilizasse o tipo de veículo que Pedroso utilizou, fosse esse ou outro discurso. O problema não está na crítica, ou no alvo dela, mas sim no suporte. Não consigo sequer começar a refletir sobre o que quer que seja extrafilme com imagens que se movem tão nitidamente, tão obviamente para dentro, que a cada instante evocam as condições de sua gênese. (A história do documentário está repleta de lições sobre a falência metonímica de suas imagens).  O problema aqui é pessoal. Eu não consigo aceitar o que aquelas imagens estão me dizendo, há um constante bloquear: sempre quando, após alguma sequência significativa, ouço mentalmente o clique -- algo acaba de me ser sugerido e faço um aaah táá -- imediatamente outra parte da mente entra em cena e bloqueia a sugestão, desviando minha atenção para a estrutura, pra montagem, para  a invisibilidade deliberada e desviadora de Pedroso. E a presença de Pedroso, enquanto narrador e remontador dessas imagens, acaba soando tão estranha e problemática quanto deve ter sido pra ele estar naquele cruzeiro.

*Claro que essa questão é discutível, e aí entrariam documentários de denúncia, protesto, com ditadores como protagonistas, até aqueles que procuram entender o "mal". Poderia ser argumentado que o documentário protagonizado pelo Idi Amin Dada, pelos meus critérios, também não seria válido porque o Idi Amin atua contra si mesmo, se ridicularizando involuntariamente, dentro da montagem proposta por Schroeder. Mas o meu ponto é que provavelmente nenhum deles utiliza, por exemplo, imagens filmadas pelos próprios personagens. E aí entra a velha questão da não-artificialidade, da realidade sendo mostrada supostamente crua e nua, etc.


**Penso no trabalho de outros documentaristas que se valem de imagens de arquivo, ou filmadas por outros, para montarem seus trabalhos, por exemplo o Harun Farocki, que  questiona (literalmente, dentro do próprio filme, na medida que as imagens vão aparecendo)  as imagens em si, o contexto em que elas foram produzidas, e seu valor enquanto cinema. Não é a toa que ele mesmo diz que "trabalha contra o cinema".

terça-feira, 5 de julho de 2011

Dúvida

Consideremos esta garota, muito bonita, extrovertida e inteligente, 20 e poucos anos, participante ativa e conhecedora das particularidades linguísticas de diversas redes sociais, das quais recortaremos somente o Facebook (FB). São dez da noite de uma sexta-feira fria, e ela se sente sozinha. Possui muitos amigos no FB, mas só se considera realmente próxima de menos de 10% deles.

Em frente ao computador, FB aberto, ela está em dúvida entre duas combinações de roupas, qual delas a deixaria mais linda e sexy para a noite. Mas ela não é ingênua, sabe que não basta sair deslumbrantemente bela que assim encontrará alguém que fará todo o trabalho valer a pena. Ela simplesmente quer se sentir bonita consigo mesma, e, claro, quer que outros a desejem. Que a desejem, mas a combinação tem que ser tal que a cena se configure de uma maneira que ela pareça alheia à própria beleza, como se ela despertasse o desejo nos outros nossa, sem querer.

Ela separa duas peças de roupas e dois adornos de cabelo, ambos diferentes. Entre atualizar o site para checar se recebeu novas mensagens, entremeia olhadelas no espelho onde avista seu reflexo segurando a roupa à frente do corpo, verificando as diferentes possibilidades de combinação. A noite é fria, ela não se decide, e o trabalho de escolher as roupas, misturado a um sentimento de solidão e de falta de expectativas, provocam nela um cansaço prematuro.

Ela é o que chamam de moderna (palavra que ela ouve mentalmente com o R arrastado), sabe como uma mulher deve se portar e agir, e por ter o conhecimento do que é esperado dos homens em tempos atuais, sente que bem poderia desafiar certas convenções, por que não? E justamente no momento em que pensa isso, um outro setor da sua mente já ergue mil defesas, engatilha toda uma retórica, fica ouriçada esperando aqueles prováveis gatos pingados  que poderiam considerá-la vulgar ou atribuir a ela qualquer dessas qualidades que não se espera que alguém manifeste em público (público?). E as porcarias das roupas que não combinam!

Exaltada, ela volta-se bruscamente para o computador e escreve corridamente um post no mural do seu Facebook, lançando aos seus mais de 300 amigos a questão que a atormenta: deve ela escolher a roupa X ou a roupa Y com o adorno Z ou o adorno W, qual é mais sexy?

O post no FB rapidamente atinge mais de 40 comentários, em sua maioria amigas ajudando a encontrar a melhor combinação de roupas&adornos que causariam o efeito esperando nos homens nessa sexta-feira  gelada. Ela se sente ousada. Lê os comentários e discute com ambos os sexos, enfatiza que a combinação de roupas deve servir unicamente à função de deixá-la sensual. Ela estima que, além do que agora são 50 e poucos comentários, deve haver aproximadamente 35% do total de seus amigos no Facebook lendo o post sem se manifestar. Muitos deles homens.

Ela pensa que, se não o efeito esperado de ousadia, alguém poderia achar estranho uma garota escrever publicamente que precisa ficar absurdamente sensual -- e gosta disso. Consigo mesma, sabe que não precisaria de ajuda, poderia muito bem se vestir de maneira deslumbrantemente sexy sozinha. E também não haveria ousadia, nem ela desafiaria microcósmicas convenções sociais, fosse a questão discutida privadamente.

Levando em conta que ela considera a sensualidade uma arte que pressupõe altíssimos níveis de sutileza, que ela sabe que qualquer elemento autoconsciente destoando minimamente do conjunto poderia arruinar a ilusão de inocência e mistério necessária para compor plenamente a imagem em seu potencial máximo, desenvolva como estas condições se relacionam com a escolha de tornar pública a sua questão, e disserte sobre o efeito da explicitação dessa estratégia feminina na mente dos homens acompanhando em tempo real o problema no FB, perpassando por tópicos exaustivamente estudados em aula, e.g. “narrativização da vida contemporânea”, “construção e projeção de identidade virtual”, “pós-feminismo”, “saturação estética”, “tédio global”, “o meio como mensagem”.

quarta-feira, 29 de junho de 2011

Alguns comentários sobre "Os Sinais Impossíveis", livro do Vinícius Castro.

[Edit 2016: embora bem intencionada, essa resenha não tá dando. Mal aí, Vini]

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Eu lutei muito com o ele, e digo isso no bom sentido, na tentativa de chegar em algum lugar; eu me debatendo com ele, eu o xingando e sendo xingado de volta. Qualquer um de determinada geração e classe se identificaria ferozmente com muita coisa ali, e não é fácil. Comigo foi muito mais sério do que aquela coisa exultante olha olha eu faço isso eu sou igual ao personagem. 

* * *

João, personagem principal, meio que não tem escolha a não ser transformar toda vivência cotidiana em narrativazinhas esgotadas, esvaziadas, ao mesmo tempo em que  debate consigo mesmo justamente pela obviedade que essas narrativas pressupõem, como se tudo já tivesse sido feito, dito, ironizado e se repetido na ironia. A consequência é a incapacidade de extrair algum sentido sério disso tudo. Não é a toa que, para João, só o que de fato faz sentido é: Luísa, sua namorada, e futebol. (Mulher e futebol, hãn?)

(Importante: esse não é o discurso do autor, mas sim a narração da própria consciência dos personagens: são eles que falam e  pensam  e que vivem dessa maneira. O que o livro como um todo diz é bem mais complexo e fugidio.)

Os momentos mais fortes são justamente os que narram a consciência dos personagens realmente tentando, de verdade, encontrar  do outro lado do muro contra o qual elas batem a cabeça algo autêntico, que vá além desse ciclo de obviedades, e chegar a uma conclusão qualquer sobre o que quer queseja, principalmente sobre coisas que aparentam uma distância enorme do cotidiano desses jovens (há guerras acontecendo no mundo; mas como levar a sério as imagens horrorosas repetidas dia-a-dia na televisão ecoando sem sentido numa sala de estar vazia e mal iluminada, a não ser por um esforço imaginativo infecundo, uma fagulha empática?) E Luísa, no final do livro, no corredor de um hotel, se debatendo pra não se deixar cair no reducionismo bobo da ideia que só porque há a distância não quer dizer que não esteja acontecendo com pessoas reais; um raciocínio que ela sabe muito bem de onde vem e porque ela o tem naquele momento, tentando alcançar eventos distantes sem parecer perante si própria que só estava repetindo pensamentos já mais do que esgotados sobre coisas que não têm peso no seu cotidiano.

Aos poucos vamos percebemos, sempre sutil e parcimoniosamente, que Luísa sofre duma depressão séria, e o modo como Vinícius dá forma a ela é motivo de admiração. Mas a depressão de Luísa é mais um indício do pathos da coisa toda, da presença  de uma consciência mais aguçada que a do namorado, consciência esta que percebe que alguma coisa tem que ser levada a sério. Luísa incorpora todo o modo de ver de João, com a diferença de que ela vai além, ela detecta as coisas precisamente onde João não consegue seguir adiante – que é justamente o ponto de partida de sua própria consciência (de Luísa), e portanto de seu sofrimento interno, que é narrado com muita sutileza. Não há a palavra “sofrimento”, mas me lembro bem da imagem de Luísa parada no corredor do hotel, olhando pela janela para um Rio de Janeiro-cartão-postal, e dentro dela acontecendo toda uma luta enorme. O que vemos narrado no livro não é tanto a depressão em si, mas sim o reflexo não anunciado dela, na forma de uma busca pela mais ínfima autenticidade de pensamento que seja. 

* * *

Novamente eu quero diferenciar o que eu estou dizendo daquela coisa irritante repetida e mastigada nas resenhas, de que a gente vive num vazio tremendo, de que somos meros robôs à mercê da cultura de massa, etc. O livro do Vinícius não é de maneira alguma uma tentativa de retratar uma época vazia, os personagens não são meros receptáculos de um Zeitgeist esgotado que o autor estaria expondo através deles.  Uma das coisas mais interessantes do livro é precisamente a maneira como os personagens caminham por esse universo, esmagados tanto pelo mesma noção de vaziês presente nos diagnósticos apressado quanto pelo que qualquer um com uma mínima consciência moral tem de lutar contra quando por exemplo percebe seus amigos aparentando chafurdar incessantemente numa repetição absoluta de vaziêz, como se de repente nos esquecêssemos de toda uma infinita carga de coisas complexas que eles também carregam. Pra mim, a consciência desse esquecimento (e o embate contra ele) são das coisas mais bonitas do livro.

Há um trecho que pode ser ilustrativo: João está olhando para uma foto de uma menina capturada num pose sexy, e a mente dele num rompante começa a percorrer diversos caminhos até que o narrador chega na menina da foto, no presente, se olhando no espelho de um banheiro, paralisada de medo. É um dos poucos momentos onde João consegue fugir da sua excessiva estetização da realidade. A menina da foto parece toscamente com muitas daquelas que vemos em redes sociais, desprovida da menor autoconsciência. Mas o efeito é que de repente como que somos assaltados por um vislumbre de que ela está viva em algum lugar, e aquela foto não é exatamente o que aparenta, que talvez haja uma carga de complexidade por trás daquele besteira congelada, uma insegurança perante um namorado apontando uma câmera pra ela e exigindo uma foto que justamente no momento em que é tirada expressa o esforço gigantesco da menina para parecer naturalmente sexy perante a própria tentativa de “publicalizar” sua beleza, toda uma mistura de medo e insegurança incrustrada na mera tosquisse que evidenciam as redes sociais, tomando forma ali, naquele rosto no espelho.

* * *

Eu disse que o livro não era a representação ou retrato de uma época. Mas a matéria prima de Vinícius é sim uma parcela da realidade, de um contexto, mas é essa parcela tomada forma e trabalhada (nada de realidade nua e crua aqui). YouTube, festas, repetição, toda uma geração nascida e criada na frente da Internet -- essas coisas são um ponto de partida. Arriscando severamente ser piegas, eu diria: a voz criada por Vinícius é uma consciência moral se debatendo num meio aparentemente tão pouco apropriado a ela. Não só isso, há elementos interessantíssimos de sobra no romance, mas sim, também isso, talvez principalmente isso.

sábado, 21 de maio de 2011

Notas esparsas sobre Coetzee, de nada pra lugar nenhum.

Em À Espera dos Bárbaros (1980), o narrador, um velho magistrado vivendo na modorra de uma pequena cidade fronteiriça de defesa contra “certos bárbaros”, atormentado pela impotência sexual e por um estranho afeto por uma jovem bárbara recém capturada e torturada, decide levar a moça de volta para seus companheiros. Animado por finalmente conseguir descansar e colher água após dias viajando sob um inverno lancinante, o magistrado enfim sente seu sangue correr com as investidas da jovem, cegada após ser torturada pelos chefes do magistrado. Depois do sexo, ele dorme como uma criança em cima dela. Acorda no meio da noite com uma estocada de terror: sua mente está vazia. 

Ele tenta compreender o elo que o liga àquela mulher bárbara, selvagem, com o corpo coberto de cicatrizes. Indaga-se: é mesmo ela que ele deseja ou são esses traços da História marcados no corpo dela? Não chega a nenhuma conclusão; os pensamentos, repetitivos e cíclicos, tornam-se opacos e perdem o sentido. Ele a puxa para si; ela dorme um sono profundo e sereno, para o qual ele também logo desliza novamente.

***

Em Verão (2009), uma das mulheres que prestam depoimento sobre o falecido personagem John Coetzee revela que o grande projeto de vida e obra dele era refrear quaisquer impulsos irracionais, potenciais fontes de violência, “direcioná-los para a escrita”, e, como diz Elizabeth Costello, “salvar sua alma”, numa espécie de tomada de posição perante o mundo. Essa tomada de posição, em muitos dos personagens de Coetzee já previamente estabelecida no começo do livro, será conquistada em À Espera dos Bárbaros senão com extrema violência, quando o magistrado é arrancado do conforto de seu quarto, seus discos, seus livros, e jogado no olho do furacão de medo e paranoia, com sérias consequências físicas e morais (ainda que, em certa medida, inúteis). Mas a posição é irretratável uma vez que consolidada. 

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A estocada de terror do magistrado ao perceber sua razão enuviada pode significar muitas coisas. Uma delas: o medo de ser guiado por impulsos, ou o medo de surpreender-se sem sua ferramenta para ordenar o mundo. Uma das causas que levaram o narrador ao turbilhão de caos do qual sempre manteve-se distante foi a vontade (leia-se: um bobo senso de justiça) de devolver a jovem bárbara a sua tribo, em detrimento de seus confusos sentimentos pessoais por ela. Chamar de amor esses sentimentos seria talvez precipitado: antes foram as cicatrizes no corpo dela – talvez, sempre talvez – que despertaram o seu "desejo estupidificado" (e Coetzee sempre embaralha desejo e amor, ainda que saiba e goste de dinstinguí-los lá do alto de sua desenvolvida consciência racional). Mas nem disso dá para ter certeza. E, para complicar, nada impede que isso seja uma modalidade amorosa. Apaixonar-se pela injustiça: tanto mais fácil enquanto vir em belas curvas feridas.

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A conquista de uma posição ética sempre parece implicar, nos personagens de Coetzee, numa incapacidade de lidar com impulsos, dentre eles o amoroso ou sexual. Tanto é que seus protagonistas são sempre "sem-graça", duros. Uma consequência disso é a enorme falta de jeito para relações sociais e suas convenções, e aí também entra o jogo da sedução. O amor em Coetzee, ao menos o amor sexual entre humanos, só aparece ensaiado, sempre encurralado por digressões infrutíferas, e na prática nunca dá certo - quando não termina em desastres ridículos, patéticos.  Sempre pelo medo da mente em branco.


domingo, 15 de maio de 2011

Wallace Stevens

The immense poetry of war and the poetry of a work of the imagination are two different things. In the presence of the violent reality of war, consciousness takes the place of the imagination. And consciousness of an immense war is consciousness of fact.

quinta-feira, 28 de abril de 2011

Minúscula apreciação de Infinite Jest para não iniciados

[edit 2015: êê velharia do caralho]

A primeira coisa que vem à mente quando penso em David Foster Wallace é a palavra contemporâneo, que eu uso aqui num sentido restrito e puramente pessoal: tem a ver com situações cotidianas que são experienciadas de forma autoconscientemente obstrutiva; séculos de conhecimento, arte, clichês, experiência, esvaziamento, ironia - tudo amontoado em seres humanos cujas consciências já estão mais do que saturadas com o peso da mesmice e obviedade de todas as coisas. 

A experiência de ler David Foster Wallace é, primeiramente, assistir minha consciência representada; é ter o vislumbre do gigantesco e inapreensível iceberg de pensamentos que se esconde abaixo das mais insignificantes posturas perante o mundo. Chamo simploriamente de contemporânea por eu nunca ter antes visto essa complexa rede da relações pensamentos/atos tratada antes como estrutura, como forma, como problema. Ela sempre pareceu ser um elemento, não a própria base de sustentação de tudo. Antes de qualquer definição mais abrangente, é a absoluta certeza de que o que estou lendo consiste num problema de uma geração e época específicas, que sou eu ali enquanto indivíduo pensante no século XXI (imagino os russos do século XIX lendo Os Irmãos Karamázov.) 

Ler Infinite Jest, então, é ler problemas de processos de raciocínio e de consciência elevados ao extremo a partir das vozes de drogados, adolescentes prodígios, deformados, assassinos e muita, muita gente dita “comum.” São dezenas, centenas de personagens, mas todos são tratados igualmente nas suas vidas interiores - mentes hiperconscientes num mundo saturado de informação e de pontos de vista e de proteção irônica contra a seriedade dessas informações e constante recessividade do pensamento sobre a autenticidade desses próprios pensamentos, etc, etc. O livro é uma explosão de coisas seríssimas (no sentido incessantemente ironizado no dia-a-dia), acontecendo; aquelas que, no final de contas, são as que realmente importam quando todo o resto cai por terra, coisas que só são levadas a sério pelos outros se expressadas com o devido distanciamento irônico. Não há ironia, por exemplo, na morte de um ente querido, no que essa morte faz conosco, na depressão. Mas não é preciso ir tão longe, a coisa é facilmente transferível para problemas menores e cotidianos, de se querer simplesmente conversar seriamente sem toda uma mesa revirar os olhos e realizar minuciosos estudos de guardanapo. A ironia só existe na comunicação, mas, enquanto indivíduo solitário que sente, não há ironia, e é justamente sobre isso que se ergue Infinite Jest. Como já disseram, um tremendo desintoxicante de ironia. 

Todos esses temas são potencializados pelo fato da história se passar num futuro próximo, onde o mundo foi completamente engolido pelo entretenimento comercial que, segundo o Wallace, é o que atrofia (quando consumido em grandes doses; ele compara o entretenimento a uma barra de Toblerone) a capacidade de expressar sentimentos reais e genuínos. Ler Infinite Jest é, portanto, assistir a um coração enorme tentando desesperadamente comunicar algum -- qualquer -- tipo de sentimento minimamente relevante e humano para outro ser humano, enquanto, no fundo do palco, desenrola-se um apocalipse moral, social, comercial, filosófico e excruciantemente individual. 

É evidente de que não se trata de “ser legal com o próximo”. Antes de tudo, é literatura – como adjetivo e como substantivo. Há um cuidado minucioso com a linguagem, os personagens, com os conflitos, com tudo que uma boa literatura exige. Não há uma frase preguiçosa em mais de 1000 páginas. 

Mas é uma tragédia, um livro muito triste. Os personagens são abandonados em situações de extrema dor e impotência, sempre em relação a incomunicabilidade e suas consequências. No fim, há um oceano de acontecimentos que não são mostrados, mas que foram progressivamente sendo sugeridos ao longo das muitas tramas paralelas, e que só podemos, agora, imaginar (não temos escolha). A experiência final, então, é de que há um novo livro a ser lido, e ele terá de ser lido mentalmente, o que potencializa e complica tudo que fora lido antes, já que o leitor sabe que há mais do que foi narrado, e, assim, na última página, aquele mundo, como uma fotografia, congela-se em antecipação diante da tsunami que se anuncia. Como o livro tem mais de 1000 páginas e se pretende um mundo contido em si mesmo, de ter autoreferências o tempo todo, nada mais natural que ele continuasse, projeto numa linha imaginária além da contracapa. 

Tanto os admiradores mais ardorosos quanto aqueles que precisam suportar esses admiradores tagarelando sem parar sobre o monumento impossível que é esse livro – todos eles sabem que existe algo que une todo fã do David Foster Wallace. Eles exclamam exultantes, emocionados, em qualquer lugar público, quebrando sem dó um certo decoro literário ultrapassado. A culpa reside no fato que a palavra contemporâneo nunca foi melhor utilizada. A conversa acaba sendo como uma constante e engraçada tentativa de confirmação de todas essas questões levantadas, os fãs deslumbrados tentando confirmar uns com os outros se a experiência dele foi parecida com a do outro. Duvido que haja algum leitor sério de Infinite Jest que não compartilhe minimamente desse gregarismo, e somente daí partirão quaisquer considerações críticas e analíticas. Por mais sofisticada que sejam, elas germinarão da beleza que emerge a cada página, da solidão de tantos pensamentos revirando-se sobre si mesmos, paralisados; e do lado negro de algumas das coisas espertas e engraçadinhas que todo mundo faz, todo santo dia.

sábado, 23 de abril de 2011

Teste

OK, este é um post pra dividir os antigos textos dos novos, portanto imaginem ele como uma linha enorme tipo assim _____________________________________________

sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

Olhos e dentes


São óbvios os riscos de escrever sob o recente impacto que um livro causa em você. A exaltação pode resultar em um texto sentimentalista e recheado de lacunas. Mas vou correr esse risco e somente apontar para uma pequeno detalhe, pois o livro pede um ensaio muito maior e detalhado.

Terminei de ler Cachalote, de Daniel Galera e Rafael Coutinho há poucos minutos. Em jornais e entrevistas Brasil à fora, foi dito e redito que se trata de várias histórias que não se cruzam. Eu não concordo. Claro, não se cruzam da maneira como os persongens de 21 Gramas o fazem, mas a relação aqui é de outra natureza, muito mais sutil. Estão todos vagando solitários mesmo quando há um oceano de gente ao redor deles. Mas não é só isso.

O livro começa com uma senhora, solitária e grávida, aguardando o momento do seu filho vir ao mundo. Ela mergulha numa enorme piscina e fica flutuando. Seu filho também flutua em águas uterinas. Ela sente uma tensão na barriga e eis que emerge da água uma gigantesca baleia. A senhora afaga enternecidamente a enorme cabeça do animal, cujos olhos me pareceram terrivelmente tristes.

A solidão parece conter dentro de si o embrião da violência, tanto física quanto emocional. Mas as fronteiras que separam esses dois tipos são porosas, e enquanto um personagem solitário morre de medo de machucar o primeiro amor da sua vida, frágil como um pequeno vaso de plantas, este por sua vez precisa da crueldade, precisa quebrar. Ao mesmo tempo, um casal separado, aparentemente tranquilos com sua condição, deixa entrever na vasta distância entre os dois um vislumbre da vida que não nos é mostrada - e onde acontece um embate silencioso e novamente solitário.

Não vou falar mais sob medo de estragar o final ou mesmo empurrar personagens cuja graça está precisamente na lentidão com que chegam até nós. Eu só queria atentar para os dentes afiados da enorme cachalote de olhar melancólico, encalhada numa praia. Se os personagens não possuem opção a não ser arreganharem os dentes uns aos outros, eu não senti raiva, pois não pude deixar de fitar os seus olhos.