sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Dois textos

Um ensaio meu sobre Maus: história de um sobrevivente escrito há uns bons três anos (por isso o ligeiro deslumbre com as possibilidades do meio). Ressoa contra a insignificância do meu nome a presença de ilustres como Milan Kundera, Kafka, Alan Resnais, Jean Cayrol, o Talmude, o Holocausto. Ele tem só 7 páginas. 

&

Uma resenha do livro de ensaios "Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo", do DFW, lançado pela Cia das Letras.

*


Em meados de 2011, surgiu na Internet uma imagem na qual o escritor americano David Foster Wallace aparece como se inscrito num vitral de igreja. Sobre sua cabeça, uma auréola. Uma mão solene erguendo um lápis, a outra descansada com um livro. A imagem veio à tona na época do lançamento do romance póstumo “The Pale King”, e faz parte da crescente santificação que sofre a figura do autor. Wallace é normalmente pintado como o homem que não só mostrou a totalidade do Zeitgeist, mas apontou maneiras de viver bem nele. Difícil é distinguir se já havia no coração dos leitores alguma ansiedade premonitória, como se aguardassem a vinda de um santo, ou se foi a obra que a construiu, da mesma forma que um escritor constrói seus predecessores.

“Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo”, a primeira coletânea de ensaios do autor a ser traduzida entre nós (pelos escritores e admiradores Daniel Galera e Daniel Pellizzari), oferece, nas palavras de James Wood, a possibilidade de assistirmos ao Zeitgeist “atracando-se consigo mesmo, em todas as suas confusões necessárias”. O leitor encontra ensaios e reportagens dos mais variados aspectos da vida contemporânea. Um núcleo temático pode ser encontrado num personagem do livro de contos "Oblivion". O personagem, um jornalista, define o principal conflito da vida americana como “o conflito da centralidade subjetiva - a ideia de que somos o centro da nossa própria vida - contra o reconhecimento da nossa insignificância”. Seja num cruzeiro de luxo (“Uma coisa supostamente divertida que nunca mais vou fazer”), numa feira agrícola (“Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo”), o conflito é desenvolvido em escaladas por vezes líricas, agoniantes, porvezes cerebrais, sempre pelo Wallace narrador-personagem desses ensaios.

Parte da tradição literária norte-americana praticada por J.D. Salinger, Thomas Pynchon, Don DeLillo, e levada ao extremo em Wallace, é a narração autoconsciente: de si mesmo enquanto americano médio tentando fugir de sua condição, de si mesmo enquanto um declarado não-jornalista reportando, de si mesmo enquanto pensa tudo isso. Por exemplo, no ensaio que dá título a antologia, as expectativas de Wallace, ao ser escalado para reportar sua experiência em uma feira agrícola, são de encontrar uma visão romântica do campo, um idílio de celebração de colheita. Mas a feira acaba revelando-se um aterrorizante parque de diversões, uma outra manifestação do turismo capitalista, que promove o “individualismo massificado”, que macula a “própria imaculabilidade [local] que se foi experimentar”. Através do papel de americano médio meio ingênuo de Wallace (ele diz que a voz adotada pelo narrador dos ensaios é a de alguém “um pouquinho mais estúpido do que [ele]”), como se estivesse tendo contato com a experiência de massa americana pela primeira vez, o leitor presencia a agonia da consciência individual ao ser exposta à diversão desenfreada.

Em dado momento desse ensaio, Wallace recorda-se da infância, quando ainda havia a ilusão de que o mundo inteiro existia só para estimulá-lo e precisava dormir com a luz acesa, pois se ele a apagasse, o mundo apagaria junto. No final, Wallace assiste a um homem sendo levantado por uma grua giratória no alto de um brinquedo, diante de americanos sufocando de tanto rir, e reflete que não mais consegue sustentar essa ilusão. Isso dispara uma epifania: sua consciência refugia-se em si mesma para se proteger do espetáculo grotesco, e “o mundo se apaga como uma luz”. A outra imagem, não explicitada, sugerida após a última página como um final alternativo, é a de uma massa de adultos infantilizados.

A sensibilidade de Wallace é sempre atraída pelo subtexto cultural inscrito nas experiências cotidianas de uma cultura, através das quais ela revela suas engrenagens. No famoso ensaio sobre as diversões promovidas por um cruzeiro de luxo, Wallace relata que a principal atividade proposta pela viagem não é a diversão desenfreada, nem a “difícil decisão de quais entre as infinitas formas de diversão escolher”, mas sim o gerenciamento da experiência da diversão: o passageiro não precisa fazer nada, nem se preocupar com a experiência, tudo será gerenciado para ele. Sempre sofrendo na pele, Wallace mostra os custos humanos e psíquicos de não ter que pensar em “Absolutamente Nada”: garçons tiranizados pelos chefes do navio, "Sorrisos Profissionais" estampados na cara de funcionários que preferiam que ele não estivesse ali. O “retorno ao útero” que é o cruzeiro de luxo acaba só tornando mais insuportável a volta para o “mundo real”, onde decisões tem de ser tomadas na velocidade do batimento cardíaco. No final, outra epifania, quando a mente de Wallace percebe num espetáculo de hipnose a síntese insuportável do gerenciamento da vontade alheia, e por conseguinte de uma cultura que promove o esmagamento, via anestesia, da consciência ativa, do "eu" que precisa existir e decidir.

O estilo hiperdescritivo de Wallace é informado por um tipo de realismo: a sensação de que sua capacidade de observação não deixa passar nada. Assim, no ensaio “Federer como experiência religiosa”, uma crônica esportiva misturada com jornalismo e ensaísmo, sua “tese” é demonstrar a literalidade dessa experiência religiosa. Wallace não reflete, mas constrói essa experiência, por meio da emulação de um constante sentimento de “tomada de consciência”. Erich Auerbach escrevem em “Mímesis” que o estilo de narração de Montaigne era se demorar em cada mudança de estados de maneira a narrar os diferentes estágios dessa mudança. Por sua vez, o Federer de Wallace, paradigma da Beleza num esporte atualmente centrado na força bruta, aparece na descrição das microdecisões inconscientes do tenista (nas quais repousaria sua famosa genialidade). A literalidade da experiência religiosa acontece quando os muitos temas plantados separadamente ao longo do texto convergem numa epifania abrupta, na qual a consciência é finalmente subjugada por uma Natureza que é capaz de produzir ao mesmo tempo a improbabilidade de um garoto de dois anos sobreviver a um também improvável câncer - e Roger Federer.

As epifanias utilizadas por Wallace em vários desses ensaios são uma versão Wallaciana das utilizadas pelo James Joyce dos contos, isto é, o momento onde a ação é interrompida logo antes do clímax, e o final projeta-se e potencializa-se na imaginação do leitor. Nos ensaios, elas assumem duas formas. Uma delas é a sensação da consciência como um animal que sofre uma lesão e se recolhe, acuado. É uma maneira de Wallace ensaiar, precisamente, a derrota da consciência ativa, que circunscreve o mundo, para o solipsismo, a ideia de que o mundo não existe fora da consciência. Não é a toa que alguns dos ensaios terminem justamente com a saída de cena da consciência: nada resta do mundo, logo nada mais a ser relatado.

A outra forma epifânica tem sinal positivo. É o caso de Federer, em quem Wallace identifica muitas das qualidades físicas e espirituais que a cultura americana tenta eliminar. Há uma espécie de elogio à natureza (ou metafísica), misturado com a resignação da consciência a essa natureza (da qual ela faz parte, afinal). “A reconciliação do ser humano com o fato de possuir um corpo”, nas palavras de Wallace. Depois de vôos, mergulhos e arcos capturando os menores detalhes de uma partida de tênis, das câmeras de TV, e dos espectadores, é como se a consciência de Wallace aterrissasse sobre Roger Federer e contemplasse, num instante derradeiro, as diversas forças invisíveis que agem sobre o ambiente, ao redor de e contra Federer.

No fim, a constante “tomada de consciência”, as páginas e páginas de longos parágrafos, digressões, notas de rodapé dentro de notas de rodapé, exaustão mental e estilística - tudo isso não é nada além de uma forma de resistência mental, de prestar atenção. Ainda que alguns desses ensaios sejam o palco onde é ensaiada a vitória do solipsismo,  eles acabam também oferecendo o outro lado: após a leitura, o leitor sente portas se abrindo, caminhos liberados, uma saída para esse “reino do tamanho do nosso crânio”.

O impacto final de todo o maximalismo exaustivo do autor numa única imagem libertadora é o mais próximo que o êxtase estético chega de tocar o religioso. Mas não é obra de um santo. Ela não nos ensina a viver. A moralidade na obra de Wallace é inseparável de seus efeitos estéticos, e não e preciso muito esforço para perceber que seus valores se autodestroem quando transformados em prescrições, da mesma forma que algumas partículas frágeis são destruídas ao terem suas individualidades distorcidas pelos próprios fótons que tentam apreendê-las. Se algo, a obra de Wallace mostra do que a literatura - e só nos espaços onde ela acontece - é capaz.