segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Desconcentrado

23h00
Toda bala tem um nome.
Poema da bala: a cada estrofe alguém morre por um tiro.
A bala disparada tem o nome da pessoa morta. As estrofes contam a história da pessoa e a circunstância em que ela morreu.
As especificidades das pessoas mortas dão sentidos diferentes para o refrão.
Toda bala tem um nome.
A bala: mensageira ideal, mensagens compostas especificamente para a vida da pessoa que a recebe.
Cada morte é diferente da outra. A bala dá o sentido específico de cada morte.
Morre-se como herói, morre-se como mendigo, morre-se orgulhoso, morre-se policial ou morre-se burguês. Não é indiferenciação, não é que a bala não respeita diferenças. Ao contrário. Ela ama todas as individualidades.
Morre-se niilista, morre-se de sentido ou morre-se feliz nos braços de deus. A bala que contém seu nome revela a ingenuidade de quem acha que toda morte é igual, revela o tipo de vida que condiciona o tipo de morte que se tem.
É irônico mas é verdadeiro.
Rilke escrevendo sobre como hoje, em 1910, não se morre mais da morte no leito familiar, mas morre-se de doença em hospital: até a morte foi arrancada do peito das pessoas.
Do mesmo modo, João Cabral, esse rilkeano, pôde escrever que se morre de morte severina.
Do mesmo modo, no Rio, morre-se de assalto ou morre-se pela polícia, e a morte (o medo da morte) é aquilo que condiciona o sentido da morte de cada um.
Um guerreiro medieval morria feliz em batalha. Um morador da zona sul morre de medo de morrer de assalto.
Um bandido ambicioso, de quem fala o rap, cujo Crime é uma Estrada, morre uma morte parecida com a do guerreiro medieval, com a diferença de que a morte na prisão ou pela polícia é tudo que lhe resta. Morre-se fugindo da miséria, e a bala sabe.
Só quem está seguro em casa morre de morte niilista paralisante, inspirado em franceses inspirado em alemães.
Todos tem medo, mas do ponto de vista da bala, é como receber uma carta: don’t shoot the messenger.
Toda bala tem um nome. Parece bom.
Mas na verdade pensando em Nádia.

23h40
Meu pai dorme sentado no sofá, celular com um jogo de poker na barriga, garrafa de vinho pela metade.
Eu bebendo uma latinha de cerveja na cozinha, após ter esvaziado outra garrafa de vinho,
escrevendo um poema sobre a violência no Rio de Janeiro, imaginando mensagens distantes e armas de fogo, preocupado com o alcoolismo,
mas na verdade pensando em Nádia.

00h00
Raymond Carver, poeta, alcoólatra. A bebida o destruiu, a ele e sua mulher.
E quando viu a filha acordada às três da manhã, cinzeiro cheio, garrafas vazias, viu que a culpa era dele.
E, lado a lado desses poemas sobre vício, velhos conhecidos mortos, brigas conjugais que trovejavam na noite.
os poemas de amor, tão violentos quanto as brigas, tão bonitos quanto.

00h30
Acalma finalmente o tiroteio no Pavão-Pavãozinho, território cercado,
refém da Lagoa, Ipanema, e Copacabana.
Vejo a fumaça subindo, cercando fronteiras
(ao contrário do que é típico das fronteiras)
reais. Tiros ou estalinhos de crianças na Lagoa.
O terror do rotar cinematográfico do helicóptero.
Estou vivo, mas meu corpo treme, cuja intensidade
vibra na frequência da violência dos ícones e índices.
Mas pensando em Nádia.

01h00
Penso nos versos:
“Levantei e apertei as mãos desse homem que acabara de me dar
algo que ninguém na terra havia me dado antes”,
Assim disse Carver sobre seu médico, o mensageiro que lhe noticiara o câncer de pulmão
que o matou.
A pior notícia que alguém poderia receber
Carver recebe com a surpresa de uma carta,
de alguém distante, talvez até querido,
de todo modo não necessariamente ruim,
como se, sem querer, ele se desconcentrasse,
penso. Mas na verdade pensando em Nádia.