terça-feira, 25 de março de 2014

Vídeo doidão, fotolog, cultura

Esse texto é sobre esse vídeo doidão aqui.

"Somos um bando de lunáticos voadores para quem a gravidade é completamente opcional.” Assim o redator do Gizmodo apresenta esse vídeo, “o vídeo mais doidão que você vai assistir hoje”. Essa apresentação é quase melhor que o vídeo em si. Porque é gostosinho nos imaginarmos assim. Apesar de tudo, temos ao menos isso para nos unir. A Terra uma enorme rave onde vive um povo cujo imaginário coletivo subsiste do escambo de diversão e vertigem. Mas um povo gregário, que aceita o diferente – este implicitamente sisudo, entediado, um burocrata das galáxias saído de Douglas Adams.

Uma cultura esportiva ou festeira que expeliu um tratado naturalista – essa seria uma boa hipótese, uma hipótese mítica, originária, onde colocar o cara do Gizmodo. Um naturalista-mordomo barra mestre-sala nos apresentando uma cultura alienígena em choque com a essência inequívoca festeira e vida louca da humanidade. O vídeo um cartão de boas vindas lançado no espaço sideral, destinado aos pobres coitados desprovidos de gravidade, essencialmente inaptos à experimentar a nossa diversão cultural, em cuja base está o perigo de cair.

Somos doidões e cagamos pra gravidade chegaí alienigena.

Estamos ainda na antecâmara, rodeados de expectativas para melhor absorvemos a experiência do salão principal, esperando o elevador com a voz sexy que listará as belezas do lugar que veremos já já com nossos próprios olhos. Não há como receber a experiência, em forma de evento, sem uma pequena mediação. A informação precisa da redundância essencial à toda mensagem (e a toda cultura): a social que precede a festa. Beber antes de sair para beber. NERVO no iPod a caminho do show do NERVO. Memórias são evocadas, a experiência direcionada, rimos da expressão cotidiana doidão manifesta num contexto inesperado, já sabemos do que se trata. Estamos no ponto. Preparados para assistir a algo radical – a Humanidade?
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Lá atrás, em 2004, quando estávamos tirando fotos com a novíssima cybershot e postando no fotolog (foto-log duhr), olhávamos para as fotos e víamos só contexto – amigos engraçadas abusando do cartão de memória, lugares noturnos preferidos, círculo de tênis all-star, todo mundo fazendo cara séria em situações inesperadas, fotos em preto e branco capturando a melancolia da adolescência. Era nossa vida subjetiva que estávamos reproduzindo. Se você morou em cidade pequena com internet (ainda mais) sucateada e vida cultural “oficial” nula, isso era tudo que você tinha.

Hoje a cybershot é pura nostalgia. Só agora, dez anos depois, o próprio nome cybershot, tiro cibernético ou captura cibernética, adquire sentido pleno – justamente ao mesmo tempo que ela torna-se representativa da gênese tecnológica da fotografia digital, gostosinha e tosca como a adolescência ela própria. Todo passado que se mete, por exemplo via sci-fi, a apontar para o futuro agora presente não tem como não ser tosco, mal feito, pouco real, artificial. A artificialidade da representação e a artificialidade da adolescência ganham equivalência (e autenticidade, principalmente frente a acusações fáceis contra banalizações tão viciantes quanto o próprio Instagram). É uma espécie de reconhecimento do passado, sim, como em qualquer narrativa. Nossa como tudo falso e tosco que vergonha, mas era tão bom.

Mas meu ponto é que apenas hoje as fotos tiradas pela cybershot revelam a mediação tecnológica grosseira pela qual nossa adolescência passou de maneira a ser transmitida e reconhecida  – a qualidade levemente granulada, o brilho forte demais, a resolução 640x480 quadradona, a falta de profundidade de campo, tudo planificado. Toda uma adolescência registrada e carimbada com a marca d’água da marca CyberShot da empresa Sony, que agora se escancara.

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E eis a GoPro, a razão de um vídeo desses ser possível.  Para criar a empresa, o criador dessa sinistreza tecnológica diz ter se inspirado no fato de que não podia capturar imagens de alta qualidade porque os eventos esportivos não permitiam a entrada de fotógrafos amadores. O shift subjetivista proporcionado pela GoPro equivale a um shift profissionalizante. O nome é a coisa é a função.  Qualquer um pode se tornar um profissional com a GoPro, não apenas um profissional da imagem, mas um professional da radicalidade – o aparelho que acoplado ao humano tornará a gravidade um brinquedo, incluindo quem assiste. Essa é a noção que está sendo vendida, a antessala, a causa que se quer consequência. Com a GoPro a tecnologia se torna invisível novamente, e pronuncia a cultura radical, a beleza da humanidade voadora sem mediação. Corpos pulando, corpos caindo, corpos deslizando. Tudo embalado no ritmo de uma montagem alucinante enquanto esconde os andaimes, as futuras ferrugens das escadas dos fundos.

É expressivo que pessoas assistam a esse vídeo e não sintam a mediação, o quanto de tecnologia que há envolvida tanto na galera brincando com a gravidade quanto na própria confecção do vídeo. Toda cultura vai pintar a realidade de acordo com si própria, no caso, a radicalidade, a festa. (E há uma equivalência entre a sensação da boate, da night, com as radicalidades, como se radicalidade e night fossem imagem e espelho uma da outra. Enquanto todos dormem, nós vibramos.)

Mas tudo isso para dizer apenas que a coisa mais fantástica do vídeo está lá pro meio. Somos continuamente lançados pra cima, e após a escalada de radicalidade chegamos ao ápice.  Aqui em cima tudo treme, tudo ressoa de significação e adrenalina, e justo aí eis que somos colocados diante da única cena livre de radicalidade: um senhor de idade com um aparelho grotescamente tecnológico cobrindo sua visão, como uma caixa com uma tela. Ele vê algo que o injeta tanta adrenalina que ele abre a boca para gritar e o som é um som eletrônico contínuo como o rugido de uma máquina no limite de suas forças.

A montagem é tal que parece que o senhor está assistindo ao mesmo vídeo que estamos assistindo: a humanidade da qual faz parte, e a cultura da qual já fez parte, presumivelmente – cultura esta que agora,  por causa do corpo envelhecido, só lhe é acessível na forma de - sim - realidade virtual (feitiçaria para prolongar a vida biológica tão falida do corpo). A cena do senhor não dura nem dois segundos, o vídeo segue normalmente com radicalidade mais radical ainda, mas a intermission da imagem daquele velhinho expressa tudo que há para dizer sobre canais de comunicação e transmissão de cultura, e seus usuários.

Se aquele velhinho está ali, e ele é tão ressoante e tão singificativo, quer dizer que o vídeo sabe exatamente o que está escondendo – a tecnologia tremenda e  que dá a condição para uma cultura expressar-se e autoreferenciar-se, se escondendo e se revelando ao mesmo tempo. Sonhos de raves alucinadas noite à dentro enquanto envelhece o pobre corpo insuficiente do sonhador.

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