terça-feira, 26 de agosto de 2014

Videogame, códigos, experiência


Criticism can talk, and all the arts are dumb.
– Northrop Frye

1

Alguns criadores de jogos de videogame costumam dizer que a criação parte primeiro da mecânica para só depois vir a história, o roteiro, a narrativa, o drama.

Isso porque a tendência é sempre a de pensar junto da linguagem. No caso dos videogames, a linguagem de programação em que o jogo é escrito (ou inscrito).

Mecânica é aquilo que produz a agencialidade. Conjuntos de códigos e procedimentos, interface de agenciamento e interatividade. Também a “matemática” – a repetição dos procedimentos a serem realizados para que se chegue ao final. Em suma, aquilo a que um jogo se reduz se descontados a história, os gráficos, o roteiro, a narrativa, o drama..

A mecânica de Papers, Please: cruzar diferentes elementos de crescente complexidade informacional para tentar chegar a uma resposta de valor binário, 0 ou 1, forçosamente. 

O que fazer para que a mecânica de cruzamento de dados faça sentido enquanto jogo?

Um funcionário alfandegário de um país comunista fictício do leste-europeu cujas fronteiras acabam de ser reabertas. Ao funcionário – a você – o Governo entrega diariamente um set de regras diferente com as quais checar a documentação da extensa fila de imigrantes aguardando entrada no país. Sua função é simplesmente aceitar ou rejeitar o sujeito, baseado na oficialidade da documentação.

As coisas se complicam quando o jogo começa a inserir questões moralmente dúbias para dificultar a natureza binária da sua resposta, na forma de mulheres suplicantes com filhos distantes, alegações de burocracia excessiva para aquisição de documentos, mudanças abruptas nas leis com o propósito (escuso, ominoso) de reduzir a imigração, kamikazes atentando contra o totalitarismo arbitrário do país, um senhor que apresenta documentos tão obviamente forjados (a mão, com canetinha) tantas vezes, e com crescente complexidade e espantosa capacidade de adaptação às mudanças legislativas, que seu coração amolece, etc. Mas é preciso decidir entre 0 e 1; você tem filhos e esposa e o salário mal paga o aluguel. Falta comida e remédios. A máquina precisa rodar.

A repetição imita o trabalho burocrático tedioso de um agente alfandegário real, mas ao contrário da típica atitude que tem a tão judiada barreira entre ficção e realidade em tão baixa conta (eu quero é que a audiência sinta o tédio desse homem!1!11!!),  em “Papers, Please”  há o distanciamento tropológico necessário, há a barreira deliberadamente colocada ali, uma barreira opaca, através da qual o agente alfandegário é e não é um agente alfandegário.

A mecânica insere o jogador numa relação de equivalência e distanciamento. Eu olho para o meu passaporte e ele agora é um estranho artefato de referencialidade desgovernada, apontando para diferentes mundos e sistemas, sociedade, humanidade, burocracia, todos imprimido uma marca disfarçada sob a aparência do meu nome. 

E como agente operador dessas estruturas, lá está a imagem do agente burocrático, realizando seu trabalho repetitivo. A mecânica do jogo extrai da realidade do mundo burocrático seu funcionamento estrutural e o reduz a puro rítmo, movimento, repetição, e a relação de distanciamento e imersão não me soa muito diferente do que Kafka disse ter tentado fazer em toda sua obra: reduzir a civilização a seus elementos mais básicos e repetitivos.

2

A experiência de caminhar por um mundo deserto sem nada a fazer (a não ser o essencial: procurar e matar umas criaturas gigantes porque uma voz disse que assim sua mulher poderá ser ressuscitada), como é a de Shadow of The Colossus, tem tudo para dar errado (esse jogo foi muito linear!!), mas produziu uma obra prima. Um jogo em que não há nada no mundo a não ser os Colossos. Apenas escalar gigantescas criaturas vagando pacificamente e cravar uma espada em seus pontos vitais. 

Entre o jogador e o objetivo, há o mundo, enorme e vazio, e detalhado além da conta comparado com o fato de que, provavelmente, não há nada a ali. Explorar as ruínas, os desertos, os descampados, as cavernas – foi inútil. O mundo poderia ser chamado de cenário se sua função fosse apenas a de preencher espaço ou ser bonito, mas não é o caso.  Esse mundo igualmente enorme e inútil parece comunicar algo, parece realizar um comentário sobre a suposta urgência do jogador em finalizar sua missão.

Uma coisa é sair em uma jornada em busca de gigantes num jogo que te estimula exatamente para isso, e ao retornar para o seio da comunidade ser celebrado e aceito, num universo (derivado de Hollywood) no qual a celebração vem na forma da espetacularização, que a tudo planifica e onde qualquer elemento misterioso precisa ser iluminado – o universo normal dos games.

Outra coisa é Shadow of the Colossus, onde passar tempo demais escalando um gigante para destruí-lo evoca um misterioso senso de de arbitrariedade. 

Reduzir ao máximo a informação, eliminar tudo que não seja Colosso, para que, quando forem extintos, realmente tenha havido alguma coisa.

SotC é uma narrativa que coloca em crise a experiência muda da mecânica, e também a motivação (o drama) que faz a máquina girar. Traduzindo isso tudo no output do jogo: andar pelo mundo de SotC, ficar deslumbrado com sua paz modorrenta, sua misteriosa ausência de vida humana a não ser você, o único agente da violência. Toda vez que um Colosso é eliminado, sua alma deixa o corpo e se torna parte de você, e num mundo informacionalmente reduzido, vai ficando cada vez mais claro que, lá pelo décimo colosso, você tem andado por aí carregando uma dezena de mortes no corpo.  

Mas o jogo nunca te diz isso. O mundo continua sempre o mesmo, sempre é dia, sempre as mesmas árvores, as mesmas ruínas: a mecânica simplesmente funciona, age, opera sem dizer, se recusa a falar em nossa língua. Mas algo aconteceu, algo tem acontecido. A repetição do procedimento começa a fazer a máquina girar como se contra si mesma, como se contra sua simplicidade.

Segundo me dizem, qualquer programador consegue reconhecer um bom código quando vê um, e todos concordam reciprocamente: um bom código é um código elegante. Elegante é qualquer código cujo output seja muito maior (infinitamente, até) do que seu input.  

Não é a toa que ao longo dos anos formou-se ao redor de SotC uma comunidade dedicada a desvendar não o mistério do jogo, mas algum mistério*. A experiência de SotC se apresenta como indecifrável – o que é isso que acabou de acontecer comigo? –  e outra busca se inicia, baseada na noção de que o presente é nada mais do que o passado codificado. Não apenas jogadores percorrendo os menores locais do mapa, traçando rotas, identificando padrões nas ruínas, comparando símbolos, não apenas um mundo feito essencialmente de códigos se tornar ele próprio outro código, mas também gente inclusive hackeando versões prévias do source code do jogo para ver o que havia ali na época da criação de SotC, quando os elementos do mundo ainda estavam sendo testados, revisados, antes de se decidir que era bom.  Quem sabe ler encontra no código fonte ruínas de códigos antigos ou esquecidos, indicando a possibilidade de Colossos escondidos, procurando numa linguagem abandonada a história escondida que liga a criação ao mundo de hoje. Uma pedra específica contém um desenho específico, que se aplicado ao mapa descobre-se que encobre uma série de quadrantes ainda não explorados. Um galho abandonado se repete em dois locais diferentes.  Tudo é uma tentativa de tentar fazer a elegância falar (além de ser um comentário irônico sobre o frenezi comercial com a ideia de um jogo open world; SotC é tecnicamente um jogo fechado). SotC é no fim das contas um jogo elegante pois cria uma experiência potencialmente infinita a partir de uma mecânica simples, cuja forma não sabe dizer nada na nossa língua, mas, como é da natureza das formas, acaba como que tropeçando e encontrando um mundo cheio de mistério e ressonância do lado de cá, quase sem querer.

*  http://www.eurogamer.net/articles/2013-05-02-the-quest-for-shadow-of-the-colossuss-last-big-secret






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