segunda-feira, 23 de maio de 2016

Carta de amor e política (pt. 2)

Março de 2016

Não só os vidros para o lado de fora do bar, absolutamente tudo você transforma em cerca. Sei do jogo que você menciona, entendi tudo. Depois de jogar, você sai na rua e a experiência do jogo fica guardada, saudosa, é um lugar pro qual você gostaria de voltar, e não uma camada que você transpõe à rua. Um castelo em ruínas ao por do sol em CGI não tem nada a ver com uma construção na rua, com o centro da cidade, com uma formação específicas de pedras na praia, e o por do sol é invisível, mera astronomia, mapeada, explicada. Pessoas à sua volta, cheias de expressão e realidade, não são parecidas com pessoinhas em pixels, que você pode preencher. Ambos são lugares diferentes. Os mendigos zumbis, pelo contrário, são mais reais que os que te interpolam na rua e te enchem de culpa. A esquerda é brasileira, o brasil é brasileiro demais, e os gifs da internet não são brasileiros, são coisas de internet; ou então o brasil real só existe na internet. Cercas por todos os lados. Para não dizer de relacionamentos com outras pessoas. Você nem tem mais expectativas pois sabe no fundo da alma como tudo é decepcionante. Você cria uma razão e a transpõe para tudo – a única coisa que se relaciona com as outras – e compulsoriamente procura os sinais dessa razão que você depositou em cada experiência, até encontrar. E então se decepciona e se orgulha: estava mesmo certa, afinal. Caso não a encontre, tudo é aterrorizante e você recua com medo, como se pulasse a cerca. Seu medo é reconfortante.

Tenho desinteresse e indiferença por tudo que não é você, mas assim não dá pra viver, então me obrigo a criar links, a conectar tudo. Olha.

Eu esperava um manto sagrado de verdade, mas o que vi brilhando num post sobre as manifestações era só uma camisa do flamengo. Alguém denunciava a blasfêmia de se vestir com uma algo historicamente pertencente ao povo numa manifestação inegavelmente branca – um flamenguista reclamava. Lembrei de ti e temos esta que segue, que escrevo enquanto tento comer um pão na chapa como você, um triângulo de torrada abocanhada desaparecendo como num jogo, enquanto olho a rua onde ontem mesmo ateus e cristãos dançavam tentando despachar a entidade da corrupção. Corrupção, para eles, é obra humana, mas o ato coletivo, compartilhado, era ritualístico, e nunca conseguirão despachar algo que nem sabem aonde pertence.

Nesses momentos até mesmo a camisa do flamengo brilha, e as manifestações são exconjuros coletivos. Por toda parte vejo os canais que conectam as coisas, ando na rua e ouço vozes de TV vindo da malha de cabos de energia nos postes. O Brasil está viciado em notícias, como aguentam tanta notícia, na verdade feitiços impedindo que o enfeitiçado veja o canal em cuja água nasce a miragem dos fatos. O facebook é uma assinatura de jornal compulsória a que todos somos obrigados, e o único contrafeitiço que conheço é deixar-se tomar por este estado em que o canal, os canais que conectam, se tornem visíveis.

Minha internet esbarrou na do flamenguista revoltado, e na falta das forças da lei de outrora garantindo que ninguém deixe de ver o sagrado, o encontro dessas duas internetes, entre mundos inconciliáveis, revela a possibilidade de um canal.

Foi nas manifestações de março passado, há exatamente um ano, que descobri isso. Escrevi uns versos onde eu destacava o canal através do qual eu pude saber da existência dessas pessoas na rua. Apenas tentei destacar o tom, a textura, a materialidade daquilo que eu não conseguia – que o espectador não consegue –deixar de decodificar em sentido, em “informação sobre o Brasil”. Bastava transformar em escrita o que era dito na TV que o canal entre a materialidade e o sentido se revelaria. Mas, ao invés de deixar que o canal de comunicação trazido à tona bastasse por si próprio, cometi o erro de produzir um argumento explícito, embora também tendo a ver com comunicação e meios e canais, afirmando que toda guerra de comunicação não passa de linhas de ideologia, morimbundas, tentando aumentar suas fileiras.  Hoje meu argumento fede a indiferença e insignificância. Mas ainda gosto de transformar gente de vídeo de internet em frase, como se destituídas da confusão de serem pessoas e fossem reduzidas às suas vozes e seu sentido, que são o que realmente importa nessa guerra.

Você não discordaria que hoje a internet está ligada ao desejo. Ela responde ao teu impulso, e você tem o impulso dela. A velocidade de conexão equivale à velocidade do desejo. E teu corpo é esse meio.

Quando acabou a luz, aquele dia, e toda conexão foi cortada, você se irritou. Não com o governo, não com as empreseas de energia. Você não jogou alguém pra arder na fogueira, você simplesmente se deixou queimar.  As estrelas apareceram mas você se cegava com a luz do computador movido à bateria, olhos iluminados no breu, assistindo ao último reservatório de energia do bairro se extinguir. Não quis saber do que acontecia lá em baixo. Da janela eu ouvia gritos nas ruas, e falei para me sobrepor ao medo do escuro:  “basta a pequena ilusão de termos voltado à pré-história que as pessoas já se aproveitam do teatro que é a falta de energia”. Começam a sair na rua se achando na festa da vila, lanternas de led dos celulares como tochas. Um casal passou de bicicelta, gritando e rindo, curtindo a luz dos carros que se viravam como podiam sem os semáforos, promessas de caos, nostalgia prematura pelo pós-apocalíptico, na verdade saudade do netflix. (Sei que isso é o meu vício em luz falando por mim.)

As notícias do poder perderam toda a importância e adquiraram a qualidade de um sonho esquecido: sem energia, a distância infinita entre nossa província e o Império foi restaurada, e portanto não tínhamos nada a ver com isso, saiamos na rua e zoemos a porra toda.

O que é a rua? A rua sem luz é a rua sem política. A rua sem luz não é mais apenas a distância terrível, infinita, entre A e B, que você é obrigada a percorrer e sofrer. Todo o seu problema com a política se resume no seu medo da rua, revertido no seu desejo de permanecer entre quatro paredes, banhada por luz e informação.

Eu entendo exatamente o que é essa coisa da rua que se aloja no teu corpo, mas não vou cometer a indelicadeza de mencioná-las.  Sei que no fundo você se declara de esquerda, mas a maneira com que você foi levada a se relacionar com a bandeira máxima deles te faz se sentir hipócrita. Acho que não dá pra dizer de todo mundo que vomitam política tão literalmente.

Se te escrevo isso é porque sinto que não tenho nada a dizer aos meus amigos, todos já estão certos de sua política, e é inútil gastar meu tempo produzindo coisas que, na melhor das hipóteses, só vão reiterar a certeza de quem já está certo. Não que não seja inútil de qualquer maneira. Mas você tem algo a teu dispor algo que quase ninguém tem. Do seu terror com a política para o estado de graça é só um salto.

terça-feira, 3 de maio de 2016

Carta de amor e política (pt. 1)

"É o seguinte, e não espero que você entenda. Acho que sou de 'esquerda' mas antes de você deixar isso afundar, digo logo que não me sinto autorizada a ser nada, não sou nada. Não consigo lidar nem com dois quarteirões sem sentir uma fortaleza se armando aqui dentro. Preciso mesmo, o tempo todo, me defender. Até na padaria, um caminho seguro e tranquilo, e lá vou eu, armada até os dentes. Sorrio, digo boa tarde, boa noite, sou educada, sou prestrativa, mas estou cem por cento do tempo atenta ao canto de olho, meu corpo todo empenhado em vigiar invasões nas fronteiras. Chego em casa direto para o banheiro e vomito, suando, lacrimejando. Tento vomitar em silêncio, não quero ninguém vindo segurar meu cabelo. No curto período de alívio enquanto meu estômago se prepara para a próxima, me armo novamente contra as risadas dos meus pais cozinhando o jantar, que nesse estado parecem escárnio puro e simples, usurpadas em seguida por uma cara de súplica fingida. A culpa é imensa. Querem a comida que não vou comer, e quem tem fome não distingue entre fingir e suplicar de verdade, são esses que seguram meu cabelo, rindo do meu estado.

Lavo a boca e enxugo o suor, me sento à mesa e arranjo um sorriso na cara. Tento conversar mas só consigo reagir, responder, regurgitar educação. A comida é posta na minha frente e o cheiro imediatamente me enjoa. A cada riso, a cada dente banco mostrado, a cada pergunta sobre minha vida, me sinto mais fraca. Engulo a comida sem mastigar, ponho na verdade papel higiênico molhado na boca. Não tenho fome. Precisaria comer por respeito à fome que deveria sentir, mas tenho que respirar fundo para sufocar o enjôo com muito ar, pois ainda tenho pulmão jovem e saudável. Devo manter a barriga vazia para poder reclamar. Nunca pus um cigarro na boca, e o ar que meus pais soltam quando riem é o ar que me é roubado por essas gargalhadas, que imagino enquanto olho o prato para não olhar para eles .

Estou tentando ser sincera. Que direito meu corpo tem de se revoltar só porque algo dentro dele decidiu se afundar por vontade própria? Que tenho eu a ver com isso?

Sim, meu portugês é “bom”. Saiba que, apesar do orgulho com que exibo minhas notas na mesa de jantar, sou a pessoa mais facilmente educável do mundo. Não tenho nada dentro de mim a não ser comida recusada e muito espaço de sobra. Assim se aprende qualquer coisa.

Na rua é a mesma coisa: “aprendo” o que você ignora.

Quando não posso mais ficar na mesa fingindo estar bem, peço licença e levanto. Nesse momento as risadas cessam e os dois me olham contornar a mesa. Quando vou deixar a sala, meu pai fala (imagino) para seu prato: “Criatura egoísta”. Lavo a louça e vou para o meu quarto e tranco a porta com força, para parecer egoísta mesmo, para repetir na minha própria língua, segundo minha própria vontade, as palavras dos outros que se meteram no meu estômago (ao lado das minhas outras palavras, do português inteiro.)

Sou realmente a pessoa mais egoísta que já vi, agora eu que digo isso.

E é nesse estado que ligo o videogame e tem início o processo de esquecimento. O enjôo aos poucos desaparece. Sim, em algum momento vou ter que sair na rua novamente, e penso, sim, claramente, que não é isso que vai me ajudar. O segredo é não dar muita atenção a esse pensamento, deixá-lo passar varado como um pássaro indo cuidar da sua vida. Que tenho eu com isso?

Jogo um jogo — você não conheceria mesmo se eu falasse; aliás, te mandar isso é como escrever para a própria língua portuguesa, monstruosa, antiga, às vezes domável e amável, mas que se esforça para se enfeiar de modo a corresponder aos novos tempos — jogo um jogo que contém muitos, muitos mendigos, é uma cidade tomada por mendigos, e claro que eles querem me fazer mal. E não sinto nada, nada. Eles são legião, mas eu também sou. Agora me sinto a porta-voz do meu povo, um povo que não sente nada, que só joga, e que no tempo livre domina seus meios de comunicação, povo ao qual vocês prestam respeito todos os dias, vocês inteligentes.

É mentira, sentimos muitas coisas. Veja: não ando mais de bicicleta, não vou mais ao cinema, faz anos que não vou à praia. Nenhuma dessas coisas se compara ao que sinto quando jogo. Viu? Tenho certeza que não.

De resto, tudo que eu sinto dou descarga.

Vou te contar uma perversão: quando vamos comer fora, insisto sempre que sentemos do lado de dentro dos restaurantes e bares. Na verdade, entro direto, atravesso as mesas ao ar livre, passo pelas portas e fico o mais longe possível dos vidros que dão para a rua, enquanto meus pais ainda procuram um lugar com uma vista bonita. Se acontece deles ganharem e eu não tenho mais desculpas, e tenho que sentar do lado de fora, passo o resto da noite me defendendo, sinto concretamente meus reflexos engatilhados nas minhas juntas. Já parou para pensar nos reflexos? Nunca faça isso, siga meu conselho. Caso decida prestar atenção neles, pensar neles, eles que justamente prescindem de qualquer pensamento, vai acabar descobrindo que nosso corpo é de fato uma fortaleza automática, aperfeiçoada depois de muita bala a ponto de agir sozinha sem a intenção do mestre, que de todo modo só possui seu alto cargo por causa de acordo político.

Não me diga que não sou “afetada” pelas coisas, só porque estão separadas. O afeto que vocês falam é só um afeto entre muitos. Por causa dos meus vocês me expulsariam do clubinho, sei bem.

Mas te mando isso na pausa do jogo que estive jogando há duas horas, já estou distante do que me fez começar, e não vou reler nada.

Você me perguntou porque não me importo com política. É isso. Sinto que deveria terminar catando as peças de um coração no teclado, mas acho que você o receberia empapado em bile. Tchau."

Parte 2