quarta-feira, 25 de outubro de 2017

Imagens do preconceito em Isaías Caminha

ROUPA BONITA

Já no começo, Isaías associa a tristeza da mãe, sempre cabisbaixa, a não saber das coisas, e a dignidade feliz do pai a sua inteligência e conhecimento. Assim teoriza o jovem Isaías: ignorância traz tristeza e conhecimento traz felicidade. Isaías parte para o Rio de Janeiro para virar doutor e ser feliz.

Lá, conhece o preconceito. A primeira experiência racista é sofrida com ingenuidade e espanto. Tratado com grosseria gratuita na rodoviária, Isaías se olha no espelho: avalia sua fisionomia, suas roupas, o semblante bonito, a postura digna, a intelectualidade aflorando. Por que desconfiaram dele e não do outro homem ao seu lado? Por que essa confusão e essa indignação, como se tivesse feito algo errado, se está tão bonito, tão apropriado à capital?

O começo do romance de Lima Barreto se dá nessa chave de ingenuidade, que permite a Lima narrar a “gênese” do preconceito  de dentro, a partir de um sentimento violento na alma. 


Isaías cultivava a alma, o intelecto, a cultura, e agora, confuso, percebe nela essa mancha. Aprenderá a sentir raiva.

A CONQUISTA DA INDIFERENÇA

Mais adiante, Isaías (narrador) relembra do dia em que foi levado à delegacia, falsamente acusado de furto. Isaías tem um surto de raiva e xinga o delegado. Vai preso.


Contudo, o Isaías velho e calejado que narra suas memórias recorda com saudade esse episódio da juventude, quando ainda era ignorante à respeito do por quê de de tanta diferença e preconceito, e portanto ainda respondia às afrontas com indignação exaltada, quando ainda resistia e lutava pela indiferença, pela invisibilidade, pelo direito de cultivar recatadamente uma postura gentil, sensível, como lhe demandava o espírito educado. 

A raiva dos anos de juventude é uma memória acalentadora na velhice amarga de Isaías narrador, resignado e ocioso.

INVISIBILIDADE

Diferença entre a invisibilidade de Lima Barreto e a invisibilidade de Ralph Ellison: Em Lima, a invisibilidade é a indiferença de andar na rua sem ser visto, o luxo de não ser “julgado a priori”. Em Ellison, n’O homem invisível, a invisibilidade do narrador é uma espécie de feitiçaria: sua presença dispara alucinações nos passantes; ninguém o vê como ele é, vêem apenas sonhos e representações. O preconceituoso enxergam no Homem Invisível sua própria alucinação e terror. Assim o narrador comenta depois de quase assassinar um homem que o olhou torto graças à sua cor: “imagina o que esse homem não deve ter pensado, quase foi morto por uma alucinação, por uma criatura saída de seus pesadelos!”. Ellison evoca o também americano James Baldwin sobre a branquitude diante do negro: “perdem-se num labirinto intransponível entre a bondade com que pensam e a crueldade com que agem”).

CULTURA DO DOUTOR

Do desejo inocente de sair da roça e virar doutor, passando pelo alto status que a cultura brasileira dá à educação superior, a cultura do doutor persiste ainda hoje sob a forma de piadas. Se ser doutor hoje é ainda tratamento de superioridade utilizado com certo espírito humilde ou irônico, ser doutor para o ingênuo Isaías era ser alegre, sonho romântico de elegância e dignidade e desejo de reconhecimento do espírito. Lima promove uma encenação em registro irônico do romantismo mal digerido no Brasil. A escalada de frustrações e raiva que é “Isaías Caminha” é como uma bildung da materialidade que sustenta a cultura romântica do espírito.


ROMANTISMO

Poucos movimentos culturais foram efetivamente introjetado nos sistemas políticos e institucionais brasileiros como foi o romantismo. O modernismo não sublinha nossas instituições públicas, ao contrário de ideais românticos, como a própria República (de que duvidava o velho realista Machado de Assis).  Pouco antes do golpe de Floriano, os abolicionistas criticavam aqueles que preferiam ver primeiro a república do que a abolição da escravatura, afirmando que de nada adiantaria pensar (romanticamente) numa forma de governo para o povo, se não se tratasse antes do mal que mais o assolava.


ESPÍRITO DO DINHEIRO

Materialidade, romantismo, dinheiro. Quando a miséria se avizinha, Lima Barreto se aproxima de Goethe e Marx. A pobreza faz Isaías ver espírito no dinheiro:

“Os meus únicos amigos eram aquelas notas sujas, encardidas; eram elas o meu único apoio; eram elas que me evitavam as humilhações, os sofrimentos, os insultos de toda sorte; e quando eu trocava uma delas, quando as dava ao condutor do bonde, ao homem do café, era como se perdesse um amigo, era como se me separasse de uma pessoa bem-amada… Eu nunca compreendi tanto a avareza como naqueles dias que dei alma ao dinheiro.”

Marx, por sua vez, busca o espírito do dinheiro em Goethe:

MEPHISTÓFOLES
Então tudo aquilo que vigorosamente eu fruo,
É por isso menos meu?
Se posso pagar seis cavalos,
Não são minhas as suas forças?
Corro e sou um homem probo,
Como se tivesse vinte e quatro pernas.
(Fausto I, cena IV)



e Marx:
“O que é para mim pelo dinheiro, o que eu posso pagar, isto é, o que o dinheiro pode comprar, isso sou eu, o possuidor do próprio dinheiro. Tão grande quanto a força do dinheiro é a minha força. As qualidades do dinheiro são minhas - de seu possuidor - qualidades essenciais. O que eu sou e consigo não determinado de modo algum, portanto, pela minha individualidade. Sou feio, mas posso comprar para mim a mais bela mulher. Portanto, não sou feio, pois o efeito da fealdade, sua força repelente, é anulado pelo dinheiro. Eu sou - segundo minha individualidade - coxo, mas o dinheiro me proporciona vinte e quatro pés; não sou, portanto, coxo; sou um ser humano mau, sem honra, sem escrúpulos, sem espírito, mas o dinheiro é honrado e, portanto, também o seu possuidor. O dinheiro é o bem supremo, logo, é bom também o seu possuidor, o dinheiro me isenta do trabalho de ser desonesto, sou, portanto, presumido honesto; sou tedioso, mas o dinheiro é o espírito real de todas as coisas, como poderia seu possuidor ser tedioso? Além disso, ele pode comprar para si as pessoas ricas de espírito, e quem tem o poder sobre os ricos de espírito não é ele mais rico de espírito? Eu, que por intermédio do dinheiro consigo tudo o que o coração humano deseja, não possuo, eu, todas as capacidades humanas? Meu dinheiro não transforma, portanto, todas as minhas incapacidades no seu contrário?... não pode ele atar e desatar todos os laços? Não é ele, por isso, também o meio universal da separação?" (Marx, Manuscritos econômico-filosóficos)

*


A história termina com Isaías aceito na alta sociedade, desistindo de seus sonhos de literatura e educação. É para chegar a esse ponto que escreve suas memórias: para estabelecer a ociosidade e a resignação. Não tem mais pretensões literárias, pelo menos não com as memórias de um homem humilhado que tenta sustentar o espírito diante da miséria da república brasileira que acabamos de ler. Até a raiva o abandonou. Nesse começo de século vinte, tudo agora está bem normalizado, e o caminho aberto para o vinte e um.

segunda-feira, 16 de outubro de 2017

Simone Weil

Olho sua foto.
O óculos, quase uma
formalidade. De estilo simples
ou ausência de estilo.
Um sorriso––irônico?
Não. Você não nos olharia
como olham os olhos em fotos de hoje.
Noutra, o sorriso é sincero, cristalino.
Noutra, um tanto assustada.
Noutra, desafiadora, feroz
Sem paciência
para homens e seus amores platônicos
em sentido vulgar.
É outro o teu Platão.
E tendo vivido
e morrido como viveu e morreu,
o chão da fábrica, a fome
os cadernos onde filosofia, alma e deus
cumprem funções altamente politizadas,
e imaginando que sua própria alma
gigantesca
daria de ombros ao meu olhar,
me pergunto por que nosso amor
a tudo despolitiza.