quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

Sentimentos são mensagens

Tentativa de interpretar, ou reescrever, ou o que seja, com a ajuda de uma desleitura de Gregory Bateson, esse relato sobre bipolaridade, escrito por Helena Gayer e publicado na revista piauí de dezembro de 2014.

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A. Pulemos de um ponto de vista a outro, de uma perspectiva a outra: toda situação intracelular corresponde a uma situação sociocultural. Costumo andar por aí acreditando que meu sistema celular é controlado, autorregulado, e portanto possuo uma tendência estressante a andar na linha (mas não sem células protorevolucionárias em atividade às quatro da manhã). Talvez eu não pareça com essa mulher justamente porque minha vida intracelular foi standartizada com sucesso, tanto pela medicina quanto por todo o resto. 

B. Standartizar é padronizar. É o bom e velho dispositivo, um sistema de notações, comandos, repetição de padrões e regulamentos entrópicos visando o controle de um sistema, só.

C. No momento das crises a autora sofre uma injeção de vida e sexualidade. À essa intrusão descontrolada de hormônios segue-se imediatamente sua contraparte: uma profusão de imagens e narrativas reconhecíveis, todo um modelo de aventura e romantismo que se assenta sobre ela como uma roupa provocante vestida com alegria.

D. Sentimentos e sensações são mensagens que um sistema envia para comandar e regular transações entre corpo e ambiente. Sinta isso e aja assim. Sinto amor por você, mas você é um elemento no sistema de comunicação que se impõe entre nós, estou preso a um ponto de vista inumano e impossível, que no entanto me consola. Sou um “romântico”, a função de um ato de tradução entre línguas diferentes.

E. Clichês românticos levados a sérios, se mais nada porque são realmente sérios. O submundo, o inferior, a camada renegada pela história e da cultura e da sociedade oficiais é para onde a autora e seu corpo são impelidos aventurosamente durante as crises. As diversas evocações e invocações cósmicas de uma força reguladora, talvez nada mais que a expressão traduzida de um corpo inacessível tentando se autorregular, resultam imediatamente em sua contraparte concreta - a polícia - para assegurar que o surto não extravase demais para seu “outro” social.

F. O "dispositivo" é sujeito a formas de vidas que, entre si, não falam a nossa língua. Segundo muita gente, a linguagem intracelular é (apenas) a linguagem da informação. Se, como queria Kittler, toda informação é simbólica (no sentido de notação, inscrição, sem significado alocado), o mundo só se apresenta carregado de significado àquele que possui vida intracelular desrregulada, (que escapou à simbolização – standardização e catalogação da medicina). O problema, como o relato deixa claro, é que o mundo carregado de sentido e beleza é, principalmente, perigoso, e de uma maneira não-filosófica. O impulso desbravador levou a autora a situações socioculturalmente ruins. Inclusive, a exposição desses perigos é um dos mecanismos que valoram o relato. O fato de um cachorro vira-lata na praia às três da manhã se apresentar como a destilada encarnação do Mal contra a qual a autora precisa lutar, ou os relatos de quase violência sexual, são algo como uma “retórica da imanência”, a linguagem com que o mundo à flor da pele se articula, o xingamento do “halo brilhante das coisas”. O fato de que é preciso um pouco de padronização para funcionarmos é como se fosse um ponto de fuga de merda numa pintura bonita.

G. O fantástico da situação toda é que, sob certa análise, o corpo, o delírio, o surto poderiam facilmente representar o aspecto revolucionário, o buraco no sistema que permitiria a entrada do que lhe é estranho. O problema é que a teleologia, do ponto de vista de uma narrativa de superação, é a da reabilitação. No fim, o drama se revela uma comédia, e os velhos gêneros teimam em ser úteis, apesar da crítica meia boca. O telos da comédia enquanto gênero nunca foi nada além do mecanismo de reintegração do heroi no seio da sociedade. Da mesma forma que nossos aparelhos digitais são, do ponto de vista da história militar, um acaso, também a comédia faz rir sem querer. 

H. Embrenhar-se em perspectivas e pontos de vista. O fato de eu ler como literatura o relato da autora se deu porque essa literatura é a forma da coincidência, o corpo improvável que a experiência do surto tomou para transmitir verdade e valor. Literatura-sem-querer, botões mágicos escondidos no universo como os de um controle de videogame, pressionados por alguém em frenética desarmonia com a sequência esperada, causando sem querer um rombo no céu.

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Aufschreibsysteme 2000

Signal-to-noise Ratio


No qual Frederico Kittler resolve todos os problemas do mundo com um poema

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In less than two hundred years,
mathematical telecommunication made
the Signal to Noise Ratio
into a throughout manipulable variable.

Together with the operational limits
of the systems of everyday speech,
the limits of poetry and hermeneutics
have been crossed
and media
have been established.

Notwithstanding all consumer marketing,
one can no longer be sure
the addressee of these media
is still called Human.

Ever since its Greek origin, poetry served
to reduce a sonic chaos
into writable and therefore
articulable tones.

Ever since its Romantic origin,
Hermeneutics served to scientifically secure
this reduction of complexity
once more:
by attributing to the addressee a poetic subject
called Author.

This interpretation cleansed the interior
of all noise, which nevertheless
never ceased not to cease
in deliriums and wars.

Ever since noise in the interception of enemy signals
is no longer confronted by means
of the interpretation of
articulated speech or tones,

the burden of subjectivity
has been lifted
from our shoulders.

After  all,
automatic Weapons
are subjects
themselves.



https://www.academia.edu/2321975/On_Friedrich_Kittler_s_Signal-Rausch-Abstand_2012_

terça-feira, 26 de agosto de 2014

Videogame, códigos, experiência


Criticism can talk, and all the arts are dumb.
– Northrop Frye

1

Alguns criadores de jogos de videogame costumam dizer que a criação parte primeiro da mecânica para só depois vir a história, o roteiro, a narrativa, o drama.

Isso porque a tendência é sempre a de pensar junto da linguagem. No caso dos videogames, a linguagem de programação em que o jogo é escrito (ou inscrito).

Mecânica é aquilo que produz a agencialidade. Conjuntos de códigos e procedimentos, interface de agenciamento e interatividade. Também a “matemática” – a repetição dos procedimentos a serem realizados para que se chegue ao final. Em suma, aquilo a que um jogo se reduz se descontados a história, os gráficos, o roteiro, a narrativa, o drama..

A mecânica de Papers, Please: cruzar diferentes elementos de crescente complexidade informacional para tentar chegar a uma resposta de valor binário, 0 ou 1, forçosamente. 

O que fazer para que a mecânica de cruzamento de dados faça sentido enquanto jogo?

Um funcionário alfandegário de um país comunista fictício do leste-europeu cujas fronteiras acabam de ser reabertas. Ao funcionário – a você – o Governo entrega diariamente um set de regras diferente com as quais checar a documentação da extensa fila de imigrantes aguardando entrada no país. Sua função é simplesmente aceitar ou rejeitar o sujeito, baseado na oficialidade da documentação.

As coisas se complicam quando o jogo começa a inserir questões moralmente dúbias para dificultar a natureza binária da sua resposta, na forma de mulheres suplicantes com filhos distantes, alegações de burocracia excessiva para aquisição de documentos, mudanças abruptas nas leis com o propósito (escuso, ominoso) de reduzir a imigração, kamikazes atentando contra o totalitarismo arbitrário do país, um senhor que apresenta documentos tão obviamente forjados (a mão, com canetinha) tantas vezes, e com crescente complexidade e espantosa capacidade de adaptação às mudanças legislativas, que seu coração amolece, etc. Mas é preciso decidir entre 0 e 1; você tem filhos e esposa e o salário mal paga o aluguel. Falta comida e remédios. A máquina precisa rodar.

A repetição imita o trabalho burocrático tedioso de um agente alfandegário real, mas ao contrário da típica atitude que tem a tão judiada barreira entre ficção e realidade em tão baixa conta (eu quero é que a audiência sinta o tédio desse homem!1!11!!),  em “Papers, Please”  há o distanciamento tropológico necessário, há a barreira deliberadamente colocada ali, uma barreira opaca, através da qual o agente alfandegário é e não é um agente alfandegário.

A mecânica insere o jogador numa relação de equivalência e distanciamento. Eu olho para o meu passaporte e ele agora é um estranho artefato de referencialidade desgovernada, apontando para diferentes mundos e sistemas, sociedade, humanidade, burocracia, todos imprimido uma marca disfarçada sob a aparência do meu nome. 

E como agente operador dessas estruturas, lá está a imagem do agente burocrático, realizando seu trabalho repetitivo. A mecânica do jogo extrai da realidade do mundo burocrático seu funcionamento estrutural e o reduz a puro rítmo, movimento, repetição, e a relação de distanciamento e imersão não me soa muito diferente do que Kafka disse ter tentado fazer em toda sua obra: reduzir a civilização a seus elementos mais básicos e repetitivos.

2

A experiência de caminhar por um mundo deserto sem nada a fazer (a não ser o essencial: procurar e matar umas criaturas gigantes porque uma voz disse que assim sua mulher poderá ser ressuscitada), como é a de Shadow of The Colossus, tem tudo para dar errado (esse jogo foi muito linear!!), mas produziu uma obra prima. Um jogo em que não há nada no mundo a não ser os Colossos. Apenas escalar gigantescas criaturas vagando pacificamente e cravar uma espada em seus pontos vitais. 

Entre o jogador e o objetivo, há o mundo, enorme e vazio, e detalhado além da conta comparado com o fato de que, provavelmente, não há nada a ali. Explorar as ruínas, os desertos, os descampados, as cavernas – foi inútil. O mundo poderia ser chamado de cenário se sua função fosse apenas a de preencher espaço ou ser bonito, mas não é o caso.  Esse mundo igualmente enorme e inútil parece comunicar algo, parece realizar um comentário sobre a suposta urgência do jogador em finalizar sua missão.

Uma coisa é sair em uma jornada em busca de gigantes num jogo que te estimula exatamente para isso, e ao retornar para o seio da comunidade ser celebrado e aceito, num universo (derivado de Hollywood) no qual a celebração vem na forma da espetacularização, que a tudo planifica e onde qualquer elemento misterioso precisa ser iluminado – o universo normal dos games.

Outra coisa é Shadow of the Colossus, onde passar tempo demais escalando um gigante para destruí-lo evoca um misterioso senso de de arbitrariedade. 

Reduzir ao máximo a informação, eliminar tudo que não seja Colosso, para que, quando forem extintos, realmente tenha havido alguma coisa.

SotC é uma narrativa que coloca em crise a experiência muda da mecânica, e também a motivação (o drama) que faz a máquina girar. Traduzindo isso tudo no output do jogo: andar pelo mundo de SotC, ficar deslumbrado com sua paz modorrenta, sua misteriosa ausência de vida humana a não ser você, o único agente da violência. Toda vez que um Colosso é eliminado, sua alma deixa o corpo e se torna parte de você, e num mundo informacionalmente reduzido, vai ficando cada vez mais claro que, lá pelo décimo colosso, você tem andado por aí carregando uma dezena de mortes no corpo.  

Mas o jogo nunca te diz isso. O mundo continua sempre o mesmo, sempre é dia, sempre as mesmas árvores, as mesmas ruínas: a mecânica simplesmente funciona, age, opera sem dizer, se recusa a falar em nossa língua. Mas algo aconteceu, algo tem acontecido. A repetição do procedimento começa a fazer a máquina girar como se contra si mesma, como se contra sua simplicidade.

Segundo me dizem, qualquer programador consegue reconhecer um bom código quando vê um, e todos concordam reciprocamente: um bom código é um código elegante. Elegante é qualquer código cujo output seja muito maior (infinitamente, até) do que seu input.  

Não é a toa que ao longo dos anos formou-se ao redor de SotC uma comunidade dedicada a desvendar não o mistério do jogo, mas algum mistério*. A experiência de SotC se apresenta como indecifrável – o que é isso que acabou de acontecer comigo? –  e outra busca se inicia, baseada na noção de que o presente é nada mais do que o passado codificado. Não apenas jogadores percorrendo os menores locais do mapa, traçando rotas, identificando padrões nas ruínas, comparando símbolos, não apenas um mundo feito essencialmente de códigos se tornar ele próprio outro código, mas também gente inclusive hackeando versões prévias do source code do jogo para ver o que havia ali na época da criação de SotC, quando os elementos do mundo ainda estavam sendo testados, revisados, antes de se decidir que era bom.  Quem sabe ler encontra no código fonte ruínas de códigos antigos ou esquecidos, indicando a possibilidade de Colossos escondidos, procurando numa linguagem abandonada a história escondida que liga a criação ao mundo de hoje. Uma pedra específica contém um desenho específico, que se aplicado ao mapa descobre-se que encobre uma série de quadrantes ainda não explorados. Um galho abandonado se repete em dois locais diferentes.  Tudo é uma tentativa de tentar fazer a elegância falar (além de ser um comentário irônico sobre o frenezi comercial com a ideia de um jogo open world; SotC é tecnicamente um jogo fechado). SotC é no fim das contas um jogo elegante pois cria uma experiência potencialmente infinita a partir de uma mecânica simples, cuja forma não sabe dizer nada na nossa língua, mas, como é da natureza das formas, acaba como que tropeçando e encontrando um mundo cheio de mistério e ressonância do lado de cá, quase sem querer.

*  http://www.eurogamer.net/articles/2013-05-02-the-quest-for-shadow-of-the-colossuss-last-big-secret






segunda-feira, 9 de junho de 2014

Kenneth Burke

Tradução selvaje de um trechinho do Rhetoric of Motives (pgs 37-39) do Burke sobre categorias freudianas vistas à luz da Retórica (no sentido sempre amplo e fantástico do Burke). 





RETÓRICA DO ENDEREÇAMENTO 
(à alma individual)

(...)

Há um forte ingrediente retórico na preocupação freudiana com a neurose de pacientes individuais.

De fato, o que poderia ser mais profundamente retórico do que a noção de Freud do sonho que ganha expressão por via de subterfúgios estilísticos designados para evadir as inibições de um censor moralista? O que é isso senão o exato análogo dos dispositivos retóricos da literatura sob censura política ou teocrática? O ego com seu id confronta o super-ego tanto quanto um orador confrontaria uma espécie de audiência estranha, cujas suscetibilidades ele deve lisonjear de forma a dar o passo necessário em direção à persuasão. A psiquê freudiana é um parlamento e tanto, com interesses conflitantes expressados através de caminhos diversamente designados para levar em conta as reclamações de facções rivais.

Em particular,  pensamos na preocupação de Freud com o papel de uma audiência, ou de uma "terceira pessoa" com quem o orador estabelece uma relação, em sua comum empreitada direcionada contra tiradas tendenciosas. Eis aqui o mais puro padrão retórico: orador e audiência como parceiros de piadas exaltadas feitas à custa de outro. Se você “internalizar” tais variedades de motivos, de modo que a mesma pessoa possa de alguma maneira estar nas três posições, você tem um indivíduo complexo de muitas vozes. E embora isso tudo possa ser tratado, sob o tópico do Simbólico, como um concerto de princípios que modificam-se mutuamente uns aos outros, da mesma maneira eles podem ser vistos, do ponto de vista da Retórica, como uma querela parlamentar a qual o indivíduo reuniu da mesma maneira que ele junta medos e desejos, amizades e inimizades, saúde e doença, ou então aqueles pequenos renascimentos por meio dos quais, ao nascer para uma condição nova, ele morre para uma velha, sendo seu desenvolvimento dialético, uma série de termos em perpétua transformação.

Então por uma rota desviada nos deparamos com outro aspecto da Retórica: sua natureza enquanto endereçada, já que persuasão implica audiência. Uma pessoa pode ser sua própria audiência, desde que ela, mesmo em seus pensamentos secretos, cultive certas ideias ou imagens para efeitos os quais ela espera que essas ideias ou imagens possam ter sobre si própria; ela é aqui o que Mead chamaria de "um 'eu' endereçando seu 'eu'" [an I adressing its me]; e é a respeito disso que ela está sendo retórica quase como se ela se valesse de imagens agradáveis para influenciar uma audiência externa, ao invés de uma interna. Na Retórica tradicional, é enfatizada a relação com uma audiência externa.  A Retórica de Aristóteles, por exemplo, lida com o apelo à audiências nesse sentido primário: ela lista crenças típicas, de forma que o orador possa escolher, entre as crenças, aquelas com as quais ele identificaria favoravelmente sua causa, ou identificaria desfavoravelmente a causa de um oponente; e a Retórica de Aristóteles lista as características de caráter com as quais o orador deve procurar se identificar de maneira a dispor favoravelmente de uma audiência. Mas a retórica moderna, pós-cristã, deve também se preocupar com a noção de que, sob o tópico do apelo à audiências, estariam inclusas também quaisquer ideias ou imagens privadamente remetidas ao eu individual para propósitos moralistas ou encantatórios. Pois você se torna sua própria audiência, em alguns sentidos uma muito vaga, em outros uma muito específica, quando você se envolve em subterfúgios psicologicamente estilísticos ao apresentar seu próprio caso para você mesmo em termos simpatizantes (e até termos que pareçam crueis, de perto revelam-se muitas vezes elogiosos, tal como com neuróticos que castigam-se a si mesmos em nome de motivos elevados, os quais, quaisquer sejam seus malogros, alimentam seu orgulho individual).

Tais considerações nos tornam alertas para o ingrediente retórico em toda socialização, considerada enquanto processo de moralização. O indivíduo, se esforçando para formar-se de acordo com as normas comunicativas que se aplicam aos meios cooperativos de sua sociedade, está igualmente preocupado com a retórica da identificação. Para agir sobre si mesmo persuasivamente, ele deve recorrer variadamente a imagens e ideias que são formativas. A educação ("doutrinação") exerce de fora tal e tal pressão sobre ele; ele completa o processo a partir de dentro. Se ele de alguma maneira não age para dizer para si mesmo (enquanto sua própria audiência) o que os diversos tipos de oradores disseram a ele, sua persuasão não está completa. Apenas são efetivas as vozes exteriores que conseguem falar na linguagem de uma voz interior.

Entre os Tanala de Madagascar, é dito, a maioria dos membros suscetíveis ao tromba ("ataque neurótico indicado por um extremo desejo de dançar"), descobriu-se, estão entre os menos favorecidos da tribo. Tais ataques, diz-se, são um dispositivo que torna o possuído "o centro de toda atenção". E depois os membros mais ricos e poderosos da família da vítima pagam a conta, para que "o ego do indivíduo esteja bem satisfeito e ele possa socializar até que o próximo ataque da tromba ocorra." Em suma, "como a maioria dos ataques histéricos, a tromba requer uma audiência."

As citações são de A. Kardiner, The individual and his society. Elas sugeririam que, quando perguntarmos o que mais estaria no escopo do nosso tópico, poderíamos também incluir uma "retórica da histeria." Pois aqui também há expressões que são endereçadas – e então confrontamos a ironia derradeira, ao entrevermos como até mesmo uma catatonia que cai em puro automatismo, para além do alcance de toda comunicação linguística normal, é em sua origem comunicativa, endereçada, embora isto seja, paralogicamente, um apelo-que-acaba-com-todos-os-apelos.

terça-feira, 25 de março de 2014

Vídeo doidão, fotolog, cultura

Esse texto é sobre esse vídeo doidão aqui.

"Somos um bando de lunáticos voadores para quem a gravidade é completamente opcional.” Assim o redator do Gizmodo apresenta esse vídeo, “o vídeo mais doidão que você vai assistir hoje”. Essa apresentação é quase melhor que o vídeo em si. Porque é gostosinho nos imaginarmos assim. Apesar de tudo, temos ao menos isso para nos unir. A Terra uma enorme rave onde vive um povo cujo imaginário coletivo subsiste do escambo de diversão e vertigem. Mas um povo gregário, que aceita o diferente – este implicitamente sisudo, entediado, um burocrata das galáxias saído de Douglas Adams.

Uma cultura esportiva ou festeira que expeliu um tratado naturalista – essa seria uma boa hipótese, uma hipótese mítica, originária, onde colocar o cara do Gizmodo. Um naturalista-mordomo barra mestre-sala nos apresentando uma cultura alienígena em choque com a essência inequívoca festeira e vida louca da humanidade. O vídeo um cartão de boas vindas lançado no espaço sideral, destinado aos pobres coitados desprovidos de gravidade, essencialmente inaptos à experimentar a nossa diversão cultural, em cuja base está o perigo de cair.

Somos doidões e cagamos pra gravidade chegaí alienigena.

Estamos ainda na antecâmara, rodeados de expectativas para melhor absorvemos a experiência do salão principal, esperando o elevador com a voz sexy que listará as belezas do lugar que veremos já já com nossos próprios olhos. Não há como receber a experiência, em forma de evento, sem uma pequena mediação. A informação precisa da redundância essencial à toda mensagem (e a toda cultura): a social que precede a festa. Beber antes de sair para beber. NERVO no iPod a caminho do show do NERVO. Memórias são evocadas, a experiência direcionada, rimos da expressão cotidiana doidão manifesta num contexto inesperado, já sabemos do que se trata. Estamos no ponto. Preparados para assistir a algo radical – a Humanidade?
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Lá atrás, em 2004, quando estávamos tirando fotos com a novíssima cybershot e postando no fotolog (foto-log duhr), olhávamos para as fotos e víamos só contexto – amigos engraçadas abusando do cartão de memória, lugares noturnos preferidos, círculo de tênis all-star, todo mundo fazendo cara séria em situações inesperadas, fotos em preto e branco capturando a melancolia da adolescência. Era nossa vida subjetiva que estávamos reproduzindo. Se você morou em cidade pequena com internet (ainda mais) sucateada e vida cultural “oficial” nula, isso era tudo que você tinha.

Hoje a cybershot é pura nostalgia. Só agora, dez anos depois, o próprio nome cybershot, tiro cibernético ou captura cibernética, adquire sentido pleno – justamente ao mesmo tempo que ela torna-se representativa da gênese tecnológica da fotografia digital, gostosinha e tosca como a adolescência ela própria. Todo passado que se mete, por exemplo via sci-fi, a apontar para o futuro agora presente não tem como não ser tosco, mal feito, pouco real, artificial. A artificialidade da representação e a artificialidade da adolescência ganham equivalência (e autenticidade, principalmente frente a acusações fáceis contra banalizações tão viciantes quanto o próprio Instagram). É uma espécie de reconhecimento do passado, sim, como em qualquer narrativa. Nossa como tudo falso e tosco que vergonha, mas era tão bom.

Mas meu ponto é que apenas hoje as fotos tiradas pela cybershot revelam a mediação tecnológica grosseira pela qual nossa adolescência passou de maneira a ser transmitida e reconhecida  – a qualidade levemente granulada, o brilho forte demais, a resolução 640x480 quadradona, a falta de profundidade de campo, tudo planificado. Toda uma adolescência registrada e carimbada com a marca d’água da marca CyberShot da empresa Sony, que agora se escancara.

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E eis a GoPro, a razão de um vídeo desses ser possível.  Para criar a empresa, o criador dessa sinistreza tecnológica diz ter se inspirado no fato de que não podia capturar imagens de alta qualidade porque os eventos esportivos não permitiam a entrada de fotógrafos amadores. O shift subjetivista proporcionado pela GoPro equivale a um shift profissionalizante. O nome é a coisa é a função.  Qualquer um pode se tornar um profissional com a GoPro, não apenas um profissional da imagem, mas um professional da radicalidade – o aparelho que acoplado ao humano tornará a gravidade um brinquedo, incluindo quem assiste. Essa é a noção que está sendo vendida, a antessala, a causa que se quer consequência. Com a GoPro a tecnologia se torna invisível novamente, e pronuncia a cultura radical, a beleza da humanidade voadora sem mediação. Corpos pulando, corpos caindo, corpos deslizando. Tudo embalado no ritmo de uma montagem alucinante enquanto esconde os andaimes, as futuras ferrugens das escadas dos fundos.

É expressivo que pessoas assistam a esse vídeo e não sintam a mediação, o quanto de tecnologia que há envolvida tanto na galera brincando com a gravidade quanto na própria confecção do vídeo. Toda cultura vai pintar a realidade de acordo com si própria, no caso, a radicalidade, a festa. (E há uma equivalência entre a sensação da boate, da night, com as radicalidades, como se radicalidade e night fossem imagem e espelho uma da outra. Enquanto todos dormem, nós vibramos.)

Mas tudo isso para dizer apenas que a coisa mais fantástica do vídeo está lá pro meio. Somos continuamente lançados pra cima, e após a escalada de radicalidade chegamos ao ápice.  Aqui em cima tudo treme, tudo ressoa de significação e adrenalina, e justo aí eis que somos colocados diante da única cena livre de radicalidade: um senhor de idade com um aparelho grotescamente tecnológico cobrindo sua visão, como uma caixa com uma tela. Ele vê algo que o injeta tanta adrenalina que ele abre a boca para gritar e o som é um som eletrônico contínuo como o rugido de uma máquina no limite de suas forças.

A montagem é tal que parece que o senhor está assistindo ao mesmo vídeo que estamos assistindo: a humanidade da qual faz parte, e a cultura da qual já fez parte, presumivelmente – cultura esta que agora,  por causa do corpo envelhecido, só lhe é acessível na forma de - sim - realidade virtual (feitiçaria para prolongar a vida biológica tão falida do corpo). A cena do senhor não dura nem dois segundos, o vídeo segue normalmente com radicalidade mais radical ainda, mas a intermission da imagem daquele velhinho expressa tudo que há para dizer sobre canais de comunicação e transmissão de cultura, e seus usuários.

Se aquele velhinho está ali, e ele é tão ressoante e tão singificativo, quer dizer que o vídeo sabe exatamente o que está escondendo – a tecnologia tremenda e  que dá a condição para uma cultura expressar-se e autoreferenciar-se, se escondendo e se revelando ao mesmo tempo. Sonhos de raves alucinadas noite à dentro enquanto envelhece o pobre corpo insuficiente do sonhador.

segunda-feira, 17 de março de 2014

Assaltos

Todo mundo sabe que não se deve reagir a assaltos.

O depoimento dos assassinos de uma garota em São Paulo: morreu porque reagiu. Ninguém mandou.

Converso com uma defensora do assalto passivo, do "melhor o dinheiro do que a vida". Tento refletir sobre as conseqüências de transformar uma simples postura em um procedimento tácito, automático, de sobrevivência.

O procedimento também funciona como uma promoção profissional. Quem é levado a invocar o pacto não faz nada senão usufruir dele, exatamente como o outro lado, o que invoca o pacto na hora H.

"Vai fazer o quê? reagir? É assim que as coisas são. Vai reagir e tomar um tiro? Vai argumentar com bandido e tomar um tiro?"

O problema está próximo demais, é muito real e concreto, e eu o trato como uma abstração, uma discussão. Para minha interlocutora, que está aterrorizada, é uma questão prática, aterrorizante. Não tem nada de abstrato.

É uma postura gerada pelo terror. O terror disfarçado de praticidade. A realidade é tão aterrorizante e feia que não pode ser discutida. Ela só quer se ver livre dela, e imaginá-la é potencializá-la.

A imagem do assalto fatal não é muito diferente de conceitos como estética da violência, estética da fome, estetização do terror etc, quando mal utilizados, quando embrulhados no pacote da realidade crua objetiva.

Isso significa que a estética do terror - uma estética que precisa mostrar o terror objetivamente,  é um discurso ele próprio aterrorizado, que faz o que faz simplesmente porque está com medo, produzido por gente que está com medo. Gosto de Rubem Fonscea (por exemplo), mas existe um sentido em que sua obra é aterrorizada. Pense nos moleques de "Feliz ano novo" matando todos os ricos, pense nas descrições da escopeta deixando o corpo grudado na parede, pense nos assassinos rindo. Pense em como Rubem Fonseca se eleva retoricamente acima dos brancos aterrorizados – gente que bem poderia ser o próprio Rubem Fonseca, fosse seu apartamento no Leblon invadido. Em algum sentido, RB está fugindo dele mesmo, de seu próprio terror. Cada um lida com o terror como pode. Mas penso que, hoje, isso não é mais suficiente.

O protocolo ou pacto é no fundo como uma bandeira branca de rendição que se carrega, todo o dia, à caminho do trabalho, com olho esbugalhado e mente paralizada. Quando uma opinião corrente torna-se crença inabalável, endurece em concretude prática (reaja e morrerá), e começa a operar na realidade contra a qual ela só pretendia se resguardar, a hora é a de uma contracrença.

A consequência é que o pacto cria a esperança de uma realidade aterrorizante simples e evitável, simplesmente evitável. A invocação é só mais um recalque.

Mas é difícil, é difícil, não convenço minha interlocutora.

É foda, não vamos parar, não paremos nunca.

Seis milhões de pessoas tomando cerveja na praia de Ipanema num sábado de sol. O assunto chegou na violência urbana, e ao invés de gritar uns com os outros, romper amizades, discutir partidos políticos, seis milhões de pessoas colocam a mão no queixo, abaixam os olhos e pensam todas juntas, numa bonita coincidência: é complicado. O mar começa a inchar, engole primeiro os jogadores de volei, depois os sentados em cadeiras de praia, em seguida os que acabam de pôr os pés na areia, a água engole a calçada, os quiosques, os nossos amigos. Quando a cidade inteira já está de baixo d'água, todos mortos, descobrem que precisam multiplicar cada corpo contabilizado por três, não contabilizados.