segunda-feira, 7 de agosto de 2017

Kafka e o deus da dor: teses sobre justiça e tecnologia extraídas de A Colônia Penal

Caso a Justiça entendesse a si mesma como um mero sentimento, seria melhor chamá-la de  “sentimento de justiça”. Mas o que todo "mero" sentimento de justiça quer é a Justiça com J maiúsculo, a reparação divina de uma perda.

Assim entendida a Justiça, eis um princípio geral de Kafka: do ponto de vista da Justiça, o acusado já está condenado. Para a Justiça, a culpa do acusado é indiscutível a partir do momento em que o sentimento de justiça foi despertado em alguma instância de acusação inacessível. Para efetuar-se a Justiça, resta apenas que sua contraparte material, tribunais e juízes, transmitam ao condenado o resto.

A máquina de tortura da Colônia Penal é uma máquina de transmissão. Ela inscreve, com uma agulha, a sentença nas costas do condenado. A inscrição é, contudo, criptografada, escondida entre os floreios caligráficos que a agulha desenha nas costas do condenado para demorar-se na transmissão do sofrimento, como alguém trabalhando as curvas das letras num papel. A frase que a máquina transmite comunica, ao mesmo tempo, a condenação, a pena, e a razão.

Mas como fazer que o condenado, estúpido e ignorante de seu destino, entenda que seu sofrimento, do ponto de vista da Justiça, é justo? Primeiro, é preciso que o condenado sofra sem saber por que sofre, já que a Justiça é uma condenação que já foi decidida. Só depois de horas de tortura, quando o condenado começar a familiarizar-se com a dor, aprender a esperar as pontadas da agulha, conhecer intimamente os intervalos de alívio que precedem a próxima dor, só então ele decifrará a sentença cristalina que o  espera ao término dos floreios caligráficos. Nesse preciso momento, que também é o momento que menos importa, a agulha o assassina atravessando-lhe o crânio.

Por meio da dor causada pelos floreios da caligrafia da agulha, o condenado adquirirá um conhecimento que nenhum dos condenados que passam pelos nossos tribunais jamais conhecerá. Nossos condenados ouvem apenas frases incompreensíveis ditas deliberadamente em juridiquês, saindo da boca uma figura que em nada lembra um ser humano, em meio a discussões e aporias como as de namorados numa briga interminável. Já o condenado da Colônia Penal sentirá emergir a iluminação simples e clara da justiça em sua própria alma, por meio do conhecimento que a dor lentamente lhe ensina no corpo, e por conseguinte no espírito (evocando a sentença filosófica de Nietzsche, quando diz que a dor é aquilo que insere espírito e cultura num corpo humano).

A dor como forma de conhecimento foi também descrita por Kafka em seus diários:

1º de Fevereiro de 1922. Vista por um olhar primitivo, a única verdade real e incontestável, uma verdade não desfigurada por circunstâncias externas, é a dor física. Estranho que o deus da dor não tenha sido o deus maior das primeiras religiões (mas talvez tenha tornado-se nas posteriores). A cada inválido seu deus familiar, ao tuberculoso o deus do sufocamento. Como suportar sua aproximação sem se unir a ele em antecipação a essa terrível união?

Julian Jaynes, num estudo sobre a origem da consciência, dizia que a mente dos gregos da Ilíada e da Odisseia era uma “mente aberta” a invasões. As metafísicas que hoje atribuímos à consciência, os gregos ouviam através da possessão. Os deuses invadiam os homens e suas palavras produziam ações, afetos e pensamentos, papel que evidentemente atribuímos à (igualmente mítica) consciência.

A “dor como forma de conhecimento” concebe a possibilidade de que conhece-se algo melhor sem mediá-lo com a consciência, de que dependem os condenados de hoje para compreender sua sentença.

O cientificismo traça uma linha progressiva, evolutiva entre os gregos pré-homéricos e hoje. Mas a união harmônica entre um deus e o humano que sofre permitiria uma melhor relação com a dor do que o esquecimento que dela é pregado pelo cientificismo. Viver normalmente, no cientificismo, quando os deuses são lixo mental, significa esquecer que a dor física existe; lembrar-se é entrar num estado insuportável de ansiedade. Kafka evidentemente pensou em tal deus num momento em que procurava razões para a dificuldade de suportar suas dores (ou, como sempre em Kafka, inverteu o jogo, e projetou recessivamente um deus que sempre esteve ali). Como tolerá-las? Estar aberto à invasão de algo que, nos momentos de tranquilidade e segurança e também em todo os outros momentos da existência, nos lembre.

A Colônia Penal serve a essa pedagogia mítica pela dor. A máquina cumpre seu papel, o de ensinar a justiça pela dor. Para o sentimento de Justiça, que já condenou, o condenado deve sofrer antes de saber a razão de seu sofrimento. Porque saber antes, e só depois sofrer, como ocorre em nosso sistema em que a justiça vai sendo afunilada entre diversos humanos dotados de hermenêutica, significa forçar um discurso externo e acumulado de humanismo sobre o condenado, o quê por sua vez significa resistência por parte dele. Na nossa justiça, a cada instância pela qual passa um processo, ele se torna mais incompreensível ao condenado ignorante dessas instâncias.  Já na justiça da Colônia Penal, a sentença surge de dentro, ensinada pela dor, e não há resistência, só conhecimento pleno, iluminado, total.

No conto, a prova máxima da justeza da Justiça é que o oficial, defensor e divulgador da máquina de tortura, é quem morre nas entranhas da máquina, e não o condenado estúpido. O oficial fora condenado previamente pelo novo comandante, que é contra a máquina e seu procedimento arcaico. No conto, a sentença contra a máquina é cultivada no espírito do comandante, sem ser jamais proferida em voz alta, e mesmo assim já se arrasta pelos tribunais. Como a Justiça não acusa, mas condena, e embora a sentença se arraste, o oficial apaixonado pela máquina sabe que uma hora ela chegará até ele, que já está condenado. Depois de perceber que o narrador do conto também não aprova a máquina, o oficial entra nela voluntariamente. Mas a máquina emperra, e assassina o oficial sem floreio algum. (Cabe lembrar que a máquina é descrita como se irradiasse uma “vida simples e própria”). O oficial já sabia o crime que cometeu: ser a favor da máquina. A máquina também sabe. Do ponto de vista de quem detém o poder da Justiça, isto é, na visão do novo comandante, a máquina era uma afronta à Justiça, fato que automaticamente condena o oficial amante da máquina, mas dispensa o floreio pelo fato do oficial já ter interiorizado sua culpa.

Através de Kafka, percebe-se que a justiça num mundo secularizado só pode existir assim, numa engenhoca absurda e espalhafatosa, que no entanto serve a um propósito que o mundo secularizado precisa reproduzir: a origem divina (pré-histórica, nas palavras de Benjamin) da Justiça, que não é imposta de fora por discursos, e sim surge de dentro da pessoa como se pelo deus da dor. Tribunais não tem como servir à Justiça pois são compostos de humanos deslumbrados em seu poder hermenêutico, e a vida interior de uma tecnologia não conhece interpretações, apenas comandos. A tecnologia então imita o mecanismo divino da Justiça na era da técnica. Mas não é que a máquina se alimente de um poder divino. Ela simplesmente imita esse poder, dá-lhe a única forma que pode possuir entre nós, "modernos". Assim como um violão não é senão pedaços de madeira que, se bem arranjados, oferecem a possibilidade racional da organização de sons, harmonia e música, também os materiais da máquina da Colônia Penal são montados de forma a arrancar o poder absoluto da Justiça de suas origens de volta ao mundo. Por assim dizer, a máquina concretiza o sentimento de Justiça divino em instrumento material, racional, já que a Justiça só existe, do ponto de vista do mundo secular, na abstração objetiva, racional e desapaixonado da razão. E em matéria de razão, humano algum supera uma máquina, que não sabe fazer nada além de ser racional. Toda tecnologia é estúpida para pensar mas eficiente para imitar e produzir o poder, que não muda nunca. E embora crie sua própria vida e ponto de vista, a partir do qual o mundo é acrescido de novas perspectivas, seus efeitos não passam de iterações atuais de mundos perdidos.