quarta-feira, 29 de junho de 2011

Alguns comentários sobre "Os Sinais Impossíveis", livro do Vinícius Castro.

[Edit 2016: embora bem intencionada, essa resenha não tá dando. Mal aí, Vini]

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Eu lutei muito com o ele, e digo isso no bom sentido, na tentativa de chegar em algum lugar; eu me debatendo com ele, eu o xingando e sendo xingado de volta. Qualquer um de determinada geração e classe se identificaria ferozmente com muita coisa ali, e não é fácil. Comigo foi muito mais sério do que aquela coisa exultante olha olha eu faço isso eu sou igual ao personagem. 

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João, personagem principal, meio que não tem escolha a não ser transformar toda vivência cotidiana em narrativazinhas esgotadas, esvaziadas, ao mesmo tempo em que  debate consigo mesmo justamente pela obviedade que essas narrativas pressupõem, como se tudo já tivesse sido feito, dito, ironizado e se repetido na ironia. A consequência é a incapacidade de extrair algum sentido sério disso tudo. Não é a toa que, para João, só o que de fato faz sentido é: Luísa, sua namorada, e futebol. (Mulher e futebol, hãn?)

(Importante: esse não é o discurso do autor, mas sim a narração da própria consciência dos personagens: são eles que falam e  pensam  e que vivem dessa maneira. O que o livro como um todo diz é bem mais complexo e fugidio.)

Os momentos mais fortes são justamente os que narram a consciência dos personagens realmente tentando, de verdade, encontrar  do outro lado do muro contra o qual elas batem a cabeça algo autêntico, que vá além desse ciclo de obviedades, e chegar a uma conclusão qualquer sobre o que quer queseja, principalmente sobre coisas que aparentam uma distância enorme do cotidiano desses jovens (há guerras acontecendo no mundo; mas como levar a sério as imagens horrorosas repetidas dia-a-dia na televisão ecoando sem sentido numa sala de estar vazia e mal iluminada, a não ser por um esforço imaginativo infecundo, uma fagulha empática?) E Luísa, no final do livro, no corredor de um hotel, se debatendo pra não se deixar cair no reducionismo bobo da ideia que só porque há a distância não quer dizer que não esteja acontecendo com pessoas reais; um raciocínio que ela sabe muito bem de onde vem e porque ela o tem naquele momento, tentando alcançar eventos distantes sem parecer perante si própria que só estava repetindo pensamentos já mais do que esgotados sobre coisas que não têm peso no seu cotidiano.

Aos poucos vamos percebemos, sempre sutil e parcimoniosamente, que Luísa sofre duma depressão séria, e o modo como Vinícius dá forma a ela é motivo de admiração. Mas a depressão de Luísa é mais um indício do pathos da coisa toda, da presença  de uma consciência mais aguçada que a do namorado, consciência esta que percebe que alguma coisa tem que ser levada a sério. Luísa incorpora todo o modo de ver de João, com a diferença de que ela vai além, ela detecta as coisas precisamente onde João não consegue seguir adiante – que é justamente o ponto de partida de sua própria consciência (de Luísa), e portanto de seu sofrimento interno, que é narrado com muita sutileza. Não há a palavra “sofrimento”, mas me lembro bem da imagem de Luísa parada no corredor do hotel, olhando pela janela para um Rio de Janeiro-cartão-postal, e dentro dela acontecendo toda uma luta enorme. O que vemos narrado no livro não é tanto a depressão em si, mas sim o reflexo não anunciado dela, na forma de uma busca pela mais ínfima autenticidade de pensamento que seja. 

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Novamente eu quero diferenciar o que eu estou dizendo daquela coisa irritante repetida e mastigada nas resenhas, de que a gente vive num vazio tremendo, de que somos meros robôs à mercê da cultura de massa, etc. O livro do Vinícius não é de maneira alguma uma tentativa de retratar uma época vazia, os personagens não são meros receptáculos de um Zeitgeist esgotado que o autor estaria expondo através deles.  Uma das coisas mais interessantes do livro é precisamente a maneira como os personagens caminham por esse universo, esmagados tanto pelo mesma noção de vaziês presente nos diagnósticos apressado quanto pelo que qualquer um com uma mínima consciência moral tem de lutar contra quando por exemplo percebe seus amigos aparentando chafurdar incessantemente numa repetição absoluta de vaziêz, como se de repente nos esquecêssemos de toda uma infinita carga de coisas complexas que eles também carregam. Pra mim, a consciência desse esquecimento (e o embate contra ele) são das coisas mais bonitas do livro.

Há um trecho que pode ser ilustrativo: João está olhando para uma foto de uma menina capturada num pose sexy, e a mente dele num rompante começa a percorrer diversos caminhos até que o narrador chega na menina da foto, no presente, se olhando no espelho de um banheiro, paralisada de medo. É um dos poucos momentos onde João consegue fugir da sua excessiva estetização da realidade. A menina da foto parece toscamente com muitas daquelas que vemos em redes sociais, desprovida da menor autoconsciência. Mas o efeito é que de repente como que somos assaltados por um vislumbre de que ela está viva em algum lugar, e aquela foto não é exatamente o que aparenta, que talvez haja uma carga de complexidade por trás daquele besteira congelada, uma insegurança perante um namorado apontando uma câmera pra ela e exigindo uma foto que justamente no momento em que é tirada expressa o esforço gigantesco da menina para parecer naturalmente sexy perante a própria tentativa de “publicalizar” sua beleza, toda uma mistura de medo e insegurança incrustrada na mera tosquisse que evidenciam as redes sociais, tomando forma ali, naquele rosto no espelho.

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Eu disse que o livro não era a representação ou retrato de uma época. Mas a matéria prima de Vinícius é sim uma parcela da realidade, de um contexto, mas é essa parcela tomada forma e trabalhada (nada de realidade nua e crua aqui). YouTube, festas, repetição, toda uma geração nascida e criada na frente da Internet -- essas coisas são um ponto de partida. Arriscando severamente ser piegas, eu diria: a voz criada por Vinícius é uma consciência moral se debatendo num meio aparentemente tão pouco apropriado a ela. Não só isso, há elementos interessantíssimos de sobra no romance, mas sim, também isso, talvez principalmente isso.