sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Crise de ansiedade e sua relação com as coisas

Crise de ansiedade e a mente. Durante a crise de ansiedade, nota-se primeiro um monólogo descomunal na mente. Começa com um pequeno incômodo em não conseguir se concentrar. Em seguida não se pensa em mais nada propriamente dito. O ansioso então produz um monólogo que consiste em reiteradas constatações de que nunca mais vai conseguir pensar em algo que não seja a constatação monológica da crise. O corpo não aceita, se rebela, se protege, e sai em disparada sua sua própria língua para afogar o pensamento: falta de ar, tremedeira, calafrios, tontura. Pois o corpo erradamente diagnostica a mente como a causa daquilo tudo. Começa-se então a pensar mais, a gastar energia tentando traduzir o escândalo do corpo. Nessa batalha, quaisquer referentes “concretos” que possam ter contribuído para a ansiedade - família, dinheiro, relacionamentos – desaparecem. “Motivos” fazem parte do mundo da normalidade que vai ficando para trás.


Crise de ansiedade e o gatilho. Durante o ataque de ansiedade, pessoas, objetos e lugares estão perfeitamente demarcados, diferenciados. Passa-se uma vida inteira conscientemente entrando em lugares, e passa-se essa mesma vida ignorando que lugares também entram em você. Certos lugares adquirem na alma a propriedade de gatilhos. Sempre que se entra em um lugar, o gatilho dispara memórias, afetos, sentimentos, mas o barulho do disparo está muito longe, mal é escutado, estamos seguros. A crise de ansiedade são todos os gatilhos disparando ao mesmo tempo. 


Crise de ansiedade e pulmão. Existe uma forte conexão entre a crise de ansiedade e o ato de respirar. É recomendado que o ansioso faça um trabalho de respiração profundo, ritmado. A respiração, por controlar o ritmo do corpo, estabelece a supremacia do corpo sobre a mente, ou melhor, estabelece que as duas coisas são uma só, o que significa quebrar a ilusão de que a mente controla o corpo. O problema é que, durante a crise de ansiedade, qualquer coisa se torna um gatilho, então o ansioso tem medo de não conseguir resolver a crise com um trabalho de respiração, e a meditação também se transforma num gatilho. Porém, o ansioso deve continuar respirando de maneira ritmada mesmo sem acreditar (é revelado, na crise, que a crença é um aspecto da razão). Convém se concentrar no ar que entra e sai. Então o ansioso de repente perceberá a ansiedade como um objeto externo, como se pudesse tocar nela. O local onde essa percepção ocorrerá é no peito: lá a ansiedade poderá ser vista se debatendo, tentando se espalhar, bem onde o pulmão a encobre com seu embalo. É melhor falar em canção de ninar do que em luta. O ansioso perceberá que a ansiedade não foi embora, mas agora perdeu seu controle, tornou-se objeto. Supremacia do pulmão.


Crise de ansiedade e a civilização ocidental. Fora da crise de ansiedade, a ansiedade é sempre um objeto como outro qualquer. A normalidade trata as coisas sempre como que fora da alma, como objeto, e nós sujeitos. Durante a ansiedade, tudo que fomos educados a ignorar, não perceber, absorver, reprimir, se revolta. Há uma política da crise de ansiedade: ela revela o modo de existência ocidental, e mostra que mesmo as melhores pessoas, as pessoas mais conscientes desse modo de existência, estão vivas, estão saudáveis, estão separando sujeito de objeto. Do contrário, estivessem elas numa crise de ansiedade, não poderiam criticar nada, e desejariam profundamente o retorno à normalidade. A ansiedade mostra uma certa hipocrisia da crítica ao ocidente. Porém uma hipocrisia necessária. Pois o ansioso precisa voltar à normalidade, à saúde, para depois criticá-la.


Crise de ansiedade e informação. Durante a crise de ansiedade, recomenda-se ficar bem longe de aparelhos digitais, de modo que o ansioso não tenha contato com nenhuma informação. A única informação que não agravará a crise de ansiedade é informação sobre a crise de ansiedade. Todo o resto se transformará em gatilho. Caso o ansioso desinformado receba notificações no celular, ele terá uma experiência de pesadelo, na qual notificações que pulam e fazem barulho o atingirão como os tiros que são. Isso acontece porque os aparelhos digitais, embora criados na suposição de que sabem o que queremos, são produzidos a partir de uma planta do funcionamento fisiológico do corpo, principalmente dos orgãos sensoriais. Uma tela é construída de modo a enganar a retina do olho, e um alto falante de modo a arranjar os sons de acordo com a frequência que o ouvido humano pode absorver e decodificar em significados. Porém raramente esses significados, essas mensagens, serão convertidas em informação sobre a crise de ansiedade. Uma exceção a essa regra pode ser observada no caso de quem se ama estar longe.


Crise de ansiedade e a cultura.
 Tudo que uma tecnologia de informação faz é contrabandear os seus assim chamados “conteúdos” a partir de uma brecha, uma falha no corpo humano instalado com uma ‘cultura’. Essa brecha é o que permite a cultura ela própria a se instalar: educação. Esses conteúdos são, além disso, a própria cultura. Durante a crise de ansiedade, ocorre um curto circuito dessa cultura, e o ansioso se vê de repente não conseguindo alocar os significados necessários nos slots correspondentes, base mecânica que rege o funcionamento da cultura. Mas ainda lhe resta a memória de uma época em que os slots funcionavam perfeitamente. Essa memória é também o limite que o separa da loucura completa, do mergulho final, que ele já vislumbra durante a crise de ansiedade. 


Crise de ansiedade e a paz de espírito. Quando passa a crise de ansiedade, seja por que métodos, o ansioso se encontra de novo na saúde, e experimenta a mais profunda paz de espírito disponível na Terra. Como uma ferida, contudo, ele guarda na memória a dor da crise, o abatimento, o cansaço. O ansioso faria por bem não esquecer, não reprimir a memória da crise; ele deveria inclusive penetrar nela, aproveitando que ela agora é novamente só um objeto, e ele o sujeito (livre).


Crise de ansiedade e literatura alemã. Recomenda-se (antes ou após uma crise) que o ansioso leia certo tipo de prosa. A tese aqui é que, após o auge do romantismo alemão, alguns escritores incomodados com o Geist, com a alma, com o espírito, e muito doentes, inventaram um tipo de prosa, isto é, manusearam a tecnologia ‘escrita’ para lidar com alguns pontos cegos do romantismo, dentre eles a questão alfandegária envolvendo corpo, alma, e ambiente (gatilhos). Ajeitou-se a prosa para lidar com a essa produção de gatilhos em que foi pródigo o romantismo. Recomenda-se aqui Os cadernos de Malte Laurids Brigge, de Rainer Maria Rilke, onde o ansioso encontrará como que o mundo visto pela crise de ansiedade, porém sem as desvantagens físicas da crise, onde lugares, coisas, e pessoas possuem tanto narrativa e vida própria quanto o próprio narrador. O ansioso se deparará, em Rilke, com uma maneira de pensar análoga a maneira como pensa a própria ansiedade.


Crise de ansiedade e o amor. A vantagem da crise de ansiedade é que o ansioso fica impossibilitado de mentir. Amigos e objetos de interesse amoroso só ouvirão palavras verdadeiras do ansioso durante uma crise, e convém explorar essa vantagem. O discurso pode ser convoluto, desconexo, mas transmitirá substâncias verdadeiras, em sua textura ou em suas mensagens. Durante a crise de ansiedade, a crise de ansiedade e o amor são as únicas Verdades do mundo. Se o ansioso possui o luxo de amar e ser amado, esse amor se apresentará como o caminho de volta. Quem receia falar com o ansioso durante uma crise pode ficar tranquilo: nada é demandado de você a não ser que tu exista. O peito é a morada da ansiedade, mas é também a tua.