terça-feira, 2 de janeiro de 2018

Leitura de ficção versus leitura de feeds e timelines

Por que ler ficção causa alegria e ler feeds e timelines causa, principalmente, tristeza?

Enquanto quase se convencia da razoabilidade da defesa de Jesus, Pôncio Pilatos obedecia de modo automático ao poder do Estado, isto é, lia mentalmente um feed infinito de leis. Jesus representou para Pilatos a possibilidade de escapar do sentido pronto, autoritário, das leis. Foi ignorado. Ao condenar Jesus, Pilatos, que já sofria com uma enxaqueca terrível, foi então acometido por uma tristeza inexplicável. O leitor de feeds e timelines é acometido pela mesma tristeza. Ele quer desviar os olhos do feed assim como Pilatos desejou secretamente que Jesus dissesse a coisa certa para salvar-se (e salvar Pilatos). Dedos e olhos continuam rolando informações assim como a boca de Pilatos emitia a sentença de enforcamento* mesmo enquanto sua alma, que não acreditava possuir, gritava por socorro.


Recentemente, durante uma dessas sessões de rolagem morosas e despropositadas de timelines, me deparei com uma thread no Twitter sobre como estudiosos tendem a reprimir a presença marcante da vulgaridade na obra de James Joyce. Dizia o cara que Finnegans Wake, em seu aspecto mais elementar, seria a história de um pênis numa vagina. Mal terminei a thread e continuei a rolagem.

Trinta tuítes depois, eu estava irritado. Finnegans Wake pode ser reduzido a qualquer coisa que se queira, e um pênis numa vagina é só uma imagem do Começo. Vulgar é arriar as calças durante o jantar, não algo que James Joyce tenha escrito. Com um esforço de concentração, larguei a timeline e pensei: dar atenção a essa suposta vulgaridade, sequer utilizar essa palavra, é ignorar que Joyce estava no ramo de implodir hierarquias e oposições: épico e dramático, literário de não-literário, narração e ação, vulgaridade e o que quer que seja seu oposto. Ou seja, implodir a memória RAM da Literatura tornada atividade automática em seus escritores sob a forma de convenções literárias. Implodir não no mundo (para isso temos as lacrações), mas como efeito estético de leitura.

A contínua rolagem havia me impedido de processar uma das informações que são o objetivo superficial e enganoso das timelines, e causado uma sensação de esquecimento, irritação e anestesia. Feeds e timelines, em sua experiência ideal de rolagem infinita, promovem não “sobrecarga de informação”, como diz o clichê, mas sim tédio e vazio, porque promovem esquecimento. Do ponto de vista de uma timeline, é bom que esqueçamos todas as informações, para que tenhamos a eterna promessa de que a próxima nos salvará.

Há uma máquina de anti-esquecimento: ela se chama Ulysses (com seu “leitor ideal com uma insônia ideal”, em quem Borges moldou seu Funes, o memorioso). O livro se passa do lado de dentro dos altos muros de um único dia. Na vida, não é difícil lembrar, à noite, de algo que se pensou de manhã. Mas quando lemos um pensamento banal na página 20, que então é lembrado por outra pessoa só ao fim do dia, na página 800, aí tem-se uma ideia do funcionamento da máquina. Por meio de uma engenharia de informação única, Ulysses esgarça a memória. Uma lembrança de hoje de manhã chega com a mesma carga que uma lembrança de dez anos ou dez séculos atrás.

Enquanto eu lia os argumentos do cara sobre Joyce, cuja matéria prima é esquecimento e informação (de um dia específico, de um localização geográfica específica, constituindo um sistema-fechado infinito), a timeline do Twitter executava em mim, como se eu fosse um aplicativo, esquecimento e informação. Esquecido, demorei para ligar os pontos.

A leitura de ficção, em geral, também depende do esquecimento. É um acúmulo de experiências que vão sendo estocadas linha por linha, e em seguida esquecidas, retidas apenas em resíduos distribuídos num fluxo ininterrupto de experiência e memória. Ao final, o que esquecemos retorna com força e dá o efeito único e particular de toda boa leitura, e nos sentimos vivos.

Feeds promovem, às vezes, alegria, boas piadas, e frequentemente tristeza. E não só por causa de tanta notícia ruim, mas porque lê-se uma notícia ruim e já passa-se a outra. Assim como a ficção, a leitura de feeds e timelines também depende do esquecimento. Mas ao contrário da ficção,  há algo de morte da alma em esquecer duas horas de informação sobre, por exemplo, notícias graves e importantes, que demandam de nós posturas igualmente pertinentes, graves e importantes.

A ficção executa em nós, por meio de progressivos esquecimentos, experiência e vida. Já a timeline infinita, com informações do mundo cruel, nos transforma em aplicativos manuseados por algoritmo. Não querendo perder notícias de tais e tais assuntos, confecciono uma timeline, adiciono e deleto usuários. Nesse mundo reduzido, me posiciono de acordo com o algoritmo que me mostrou o mundo reduzido ao meu entendimento imediato. Jogo o jogo da timeline, deslizando infinitamente, e esqueço do que está na minha frente, como Pilatos com um feed na cara, uma enxaqueca dos infernos, e fico raivoso e triste.



*Tal como a história é contada em "O mestre e Margarida", de Bulgákov

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