sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Crise de ansiedade e sua relação com as coisas

Crise de ansiedade e a mente. Durante a crise de ansiedade, nota-se primeiro um monólogo descomunal na mente. Começa com um pequeno incômodo em não conseguir se concentrar. Em seguida não se pensa em mais nada propriamente dito. O ansioso então produz um monólogo que consiste em reiteradas constatações de que nunca mais vai conseguir pensar em algo que não seja a constatação monológica da crise. O corpo não aceita, se rebela, se protege, e sai em disparada sua sua própria língua para afogar o pensamento: falta de ar, tremedeira, calafrios, tontura. Pois o corpo erradamente diagnostica a mente como a causa daquilo tudo. Começa-se então a pensar mais, a gastar energia tentando traduzir o escândalo do corpo. Nessa batalha, quaisquer referentes “concretos” que possam ter contribuído para a ansiedade - família, dinheiro, relacionamentos – desaparecem. “Motivos” fazem parte do mundo da normalidade que vai ficando para trás.


Crise de ansiedade e o gatilho. Durante o ataque de ansiedade, pessoas, objetos e lugares estão perfeitamente demarcados, diferenciados. Passa-se uma vida inteira conscientemente entrando em lugares, e passa-se essa mesma vida ignorando que lugares também entram em você. Certos lugares adquirem na alma a propriedade de gatilhos. Sempre que se entra em um lugar, o gatilho dispara memórias, afetos, sentimentos, mas o barulho do disparo está muito longe, mal é escutado, estamos seguros. A crise de ansiedade são todos os gatilhos disparando ao mesmo tempo. 


Crise de ansiedade e pulmão. Existe uma forte conexão entre a crise de ansiedade e o ato de respirar. É recomendado que o ansioso faça um trabalho de respiração profundo, ritmado. A respiração, por controlar o ritmo do corpo, estabelece a supremacia do corpo sobre a mente, ou melhor, estabelece que as duas coisas são uma só, o que significa quebrar a ilusão de que a mente controla o corpo. O problema é que, durante a crise de ansiedade, qualquer coisa se torna um gatilho, então o ansioso tem medo de não conseguir resolver a crise com um trabalho de respiração, e a meditação também se transforma num gatilho. Porém, o ansioso deve continuar respirando de maneira ritmada mesmo sem acreditar (é revelado, na crise, que a crença é um aspecto da razão). Convém se concentrar no ar que entra e sai. Então o ansioso de repente perceberá a ansiedade como um objeto externo, como se pudesse tocar nela. O local onde essa percepção ocorrerá é no peito: lá a ansiedade poderá ser vista se debatendo, tentando se espalhar, bem onde o pulmão a encobre com seu embalo. É melhor falar em canção de ninar do que em luta. O ansioso perceberá que a ansiedade não foi embora, mas agora perdeu seu controle, tornou-se objeto. Supremacia do pulmão.


Crise de ansiedade e a civilização ocidental. Fora da crise de ansiedade, a ansiedade é sempre um objeto como outro qualquer. A normalidade trata as coisas sempre como que fora da alma, como objeto, e nós sujeitos. Durante a ansiedade, tudo que fomos educados a ignorar, não perceber, absorver, reprimir, se revolta. Há uma política da crise de ansiedade: ela revela o modo de existência ocidental, e mostra que mesmo as melhores pessoas, as pessoas mais conscientes desse modo de existência, estão vivas, estão saudáveis, estão separando sujeito de objeto. Do contrário, estivessem elas numa crise de ansiedade, não poderiam criticar nada, e desejariam profundamente o retorno à normalidade. A ansiedade mostra uma certa hipocrisia da crítica ao ocidente. Porém uma hipocrisia necessária. Pois o ansioso precisa voltar à normalidade, à saúde, para depois criticá-la.


Crise de ansiedade e informação. Durante a crise de ansiedade, recomenda-se ficar bem longe de aparelhos digitais, de modo que o ansioso não tenha contato com nenhuma informação. A única informação que não agravará a crise de ansiedade é informação sobre a crise de ansiedade. Todo o resto se transformará em gatilho. Caso o ansioso desinformado receba notificações no celular, ele terá uma experiência de pesadelo, na qual notificações que pulam e fazem barulho o atingirão como os tiros que são. Isso acontece porque os aparelhos digitais, embora criados na suposição de que sabem o que queremos, são produzidos a partir de uma planta do funcionamento fisiológico do corpo, principalmente dos orgãos sensoriais. Uma tela é construída de modo a enganar a retina do olho, e um alto falante de modo a arranjar os sons de acordo com a frequência que o ouvido humano pode absorver e decodificar em significados. Porém raramente esses significados, essas mensagens, serão convertidas em informação sobre a crise de ansiedade. Uma exceção a essa regra pode ser observada no caso de quem se ama estar longe.


Crise de ansiedade e a cultura.
 Tudo que uma tecnologia de informação faz é contrabandear os seus assim chamados “conteúdos” a partir de uma brecha, uma falha no corpo humano instalado com uma ‘cultura’. Essa brecha é o que permite a cultura ela própria a se instalar: educação. Esses conteúdos são, além disso, a própria cultura. Durante a crise de ansiedade, ocorre um curto circuito dessa cultura, e o ansioso se vê de repente não conseguindo alocar os significados necessários nos slots correspondentes, base mecânica que rege o funcionamento da cultura. Mas ainda lhe resta a memória de uma época em que os slots funcionavam perfeitamente. Essa memória é também o limite que o separa da loucura completa, do mergulho final, que ele já vislumbra durante a crise de ansiedade. 


Crise de ansiedade e a paz de espírito. Quando passa a crise de ansiedade, seja por que métodos, o ansioso se encontra de novo na saúde, e experimenta a mais profunda paz de espírito disponível na Terra. Como uma ferida, contudo, ele guarda na memória a dor da crise, o abatimento, o cansaço. O ansioso faria por bem não esquecer, não reprimir a memória da crise; ele deveria inclusive penetrar nela, aproveitando que ela agora é novamente só um objeto, e ele o sujeito (livre).


Crise de ansiedade e literatura alemã. Recomenda-se (antes ou após uma crise) que o ansioso leia certo tipo de prosa. A tese aqui é que, após o auge do romantismo alemão, alguns escritores incomodados com o Geist, com a alma, com o espírito, e muito doentes, inventaram um tipo de prosa, isto é, manusearam a tecnologia ‘escrita’ para lidar com alguns pontos cegos do romantismo, dentre eles a questão alfandegária envolvendo corpo, alma, e ambiente (gatilhos). Ajeitou-se a prosa para lidar com a essa produção de gatilhos em que foi pródigo o romantismo. Recomenda-se aqui Os cadernos de Malte Laurids Brigge, de Rainer Maria Rilke, onde o ansioso encontrará como que o mundo visto pela crise de ansiedade, porém sem as desvantagens físicas da crise, onde lugares, coisas, e pessoas possuem tanto narrativa e vida própria quanto o próprio narrador. O ansioso se deparará, em Rilke, com uma maneira de pensar análoga a maneira como pensa a própria ansiedade.


Crise de ansiedade e o amor. A vantagem da crise de ansiedade é que o ansioso fica impossibilitado de mentir. Amigos e objetos de interesse amoroso só ouvirão palavras verdadeiras do ansioso durante uma crise, e convém explorar essa vantagem. O discurso pode ser convoluto, desconexo, mas transmitirá substâncias verdadeiras, em sua textura ou em suas mensagens. Durante a crise de ansiedade, a crise de ansiedade e o amor são as únicas Verdades do mundo. Se o ansioso possui o luxo de amar e ser amado, esse amor se apresentará como o caminho de volta. Quem receia falar com o ansioso durante uma crise pode ficar tranquilo: nada é demandado de você a não ser que tu exista. O peito é a morada da ansiedade, mas é também a tua.


segunda-feira, 10 de outubro de 2016

Desconcentrado

23h00
Toda bala tem um nome.
Poema da bala: a cada estrofe alguém morre por um tiro.
A bala disparada tem o nome da pessoa morta. As estrofes contam a história da pessoa e a circunstância em que ela morreu.
As especificidades das pessoas mortas dão sentidos diferentes para o refrão.
Toda bala tem um nome.
A bala: mensageira ideal, mensagens compostas especificamente para a vida da pessoa que a recebe.
Cada morte é diferente da outra. A bala dá o sentido específico de cada morte.
Morre-se como herói, morre-se como mendigo, morre-se orgulhoso, morre-se policial ou morre-se burguês. Não é indiferenciação, não é que a bala não respeita diferenças. Ao contrário. Ela ama todas as individualidades.
Morre-se niilista, morre-se de sentido ou morre-se feliz nos braços de deus. A bala que contém seu nome revela a ingenuidade de quem acha que toda morte é igual, revela o tipo de vida que condiciona o tipo de morte que se tem.
É irônico mas é verdadeiro.
Rilke escrevendo sobre como hoje, em 1910, não se morre mais da morte no leito familiar, mas morre-se de doença em hospital: até a morte foi arrancada do peito das pessoas.
Do mesmo modo, João Cabral, esse rilkeano, pôde escrever que se morre de morte severina.
Do mesmo modo, no Rio, morre-se de assalto ou morre-se pela polícia, e a morte (o medo da morte) é aquilo que condiciona o sentido da morte de cada um.
Um guerreiro medieval morria feliz em batalha. Um morador da zona sul morre de medo de morrer de assalto.
Um bandido ambicioso, de quem fala o rap, cujo Crime é uma Estrada, morre uma morte parecida com a do guerreiro medieval, com a diferença de que a morte na prisão ou pela polícia é tudo que lhe resta. Morre-se fugindo da miséria, e a bala sabe.
Só quem está seguro em casa morre de morte niilista paralisante, inspirado em franceses inspirado em alemães.
Todos tem medo, mas do ponto de vista da bala, é como receber uma carta: don’t shoot the messenger.
Toda bala tem um nome. Parece bom.
Mas na verdade pensando em Nádia.

23h40
Meu pai dorme sentado no sofá, celular com um jogo de poker na barriga, garrafa de vinho pela metade.
Eu bebendo uma latinha de cerveja na cozinha, após ter esvaziado outra garrafa de vinho,
escrevendo um poema sobre a violência no Rio de Janeiro, imaginando mensagens distantes e armas de fogo, preocupado com o alcoolismo,
mas na verdade pensando em Nádia.

00h00
Raymond Carver, poeta, alcoólatra. A bebida o destruiu, a ele e sua mulher.
E quando viu a filha acordada às três da manhã, cinzeiro cheio, garrafas vazias, viu que a culpa era dele.
E, lado a lado desses poemas sobre vício, velhos conhecidos mortos, brigas conjugais que trovejavam na noite.
os poemas de amor, tão violentos quanto as brigas, tão bonitos quanto.

00h30
Acalma finalmente o tiroteio no Pavão-Pavãozinho, território cercado,
refém da Lagoa, Ipanema, e Copacabana.
Vejo a fumaça subindo, cercando fronteiras
(ao contrário do que é típico das fronteiras)
reais. Tiros ou estalinhos de crianças na Lagoa.
O terror do rotar cinematográfico do helicóptero.
Estou vivo, mas meu corpo treme, cuja intensidade
vibra na frequência da violência dos ícones e índices.
Mas pensando em Nádia.

01h00
Penso nos versos:
“Levantei e apertei as mãos desse homem que acabara de me dar
algo que ninguém na terra havia me dado antes”,
Assim disse Carver sobre seu médico, o mensageiro que lhe noticiara o câncer de pulmão
que o matou.
A pior notícia que alguém poderia receber
Carver recebe com a surpresa de uma carta,
de alguém distante, talvez até querido,
de todo modo não necessariamente ruim,
como se, sem querer, ele se desconcentrasse,
penso. Mas na verdade pensando em Nádia.

terça-feira, 27 de setembro de 2016

A mensageira

A essa foto e a essa voz
eu pergunto ––
deixa eu perguntar, por favor
O que você pensa? ––
O que pensa sobre –– sobre isso aqui?

Sobre fotos e vozes e vida
saída assim do nosso corpo remoto, mas —
Melhor não.
Isso deveria nos aproximar ou pelo menos
deveria ser não de um para o outro mas de um com o outro.

Já tu, se perguntasse, eu diria que
eu penso bastante mas ––
como posso falar?
Se ao menos você pudesse falar.

Pra mim é simples.
Não é que eu queira isso ou aquilo especificamente embora sim.
Ou porque estou aqui
E não lá fora ou mesmo aí

É só que a minha vida
agora é toda feita aqui
E tu tão remota
parece também menos lá ou aí do que aqui.
Mas tudo que tu me manda de ti
de ti se retrai e vira em mim
ecos que repetem distâncias
em vozes que só falam aqui.

E no entanto sei que isso com que converso ––
sei que tu
és uma janela para lá
para ti, para esse tu
para a segunda pessoa do singular
uma segunda pessoa singular, não eu e não outra
nem tua voz ou tua foto
mas tu

Enquanto isso ––
tu tens que mudar de vida – não aqui mas ––
é o eco

Lá, eu disse ao médico:
Doutor, engoli uma pedra de ar
A chaleira que apita explodiria se eu deixasse?
Mas não é só ar?
Doutor, deixa eu te perguntar ––




















quarta-feira, 7 de setembro de 2016

No dia da minha morte encontrei um Gyarados em frente a uma delegacia da Polícia Militar

Eu atravessava a rua trocando entre aplicativos, minha atenção voltada para uma discussão política no Facebook travada com memes. 
Um adolescente precoce mandava um Karl Marx portando um iPhone porque nenhum discurso de esquerda possuía efetividade se embrenhado no símbolo máximo do capitalismo.
Um calouro de sociologia enviava uma caricatura com elefantíase porque ninguém aqui havia lido uma linha de Marx que não seja o Manifesto Comunista. 
Um mestrando em Comunicação Social da PUC mandava o Mark Zuckerberg sorrindo como um chefão do mal.
Um futuro TI utilizava um antigo meme de um rapper americano envolvendo Edward Snowden e Mark Zuckerberg para demonstrar, pelo conceito de strange loops, que independente de ideologias ou de mensagens, o Facebook sempre se refereria de volta ao Facebook.
Um professor de literatura mandava uma foto não-solicitada do pau, gerando uma memorável marchinha de carnaval do outro lado da Internet. Ele aproveitou o ensejo para realizar um ataque mordaz ao cânone ocidental e às contingências valorativas, por escrito mesmo, que ninguém leu.
Um vestibulando colocava um óculos descendo sobre a cabeça do dito pau.
Uma aluna de Artes Plásticas floodava o post com um arsenal de fotos de paus colhidos no Google Imagens, diante dos quais o estudante de engenharia, depois de muito implorar pela sanidade de sua heterossexualidade, abandonou a discussão.
Uma funcionária do Starbucks trazia Simone de Beauvoir fumando um cigarro triunfalmente.
Um famoso tuíteiro mandava um print onde sugeria uma ação através do qual o copo descartável do Starbucks equivalesse a um muro do centro da cidade em termos de superfície ou mídia de expressividade política.
Um jogador de League of Legends enviava um meme provavelmente forjado na Tábua de Esmeralda do Chapolin Colorado dizendo não fazer sentido chamar Bolsonaro de nazista e idolatrar a Simone de Beauvoir.
Um mestrando em filosofia mandava uma xilogravura do século XIV para expressar que Jorge Ben era a figura mais importante que esse país já viu e com quem as décadas vindouras precisarão necessariamente lidar se quisermos sair dessa.
Um homem mandava um machão rindo dizendo que iria mostrar a elas o Segundo Sexo.
Uma conhecida poeta mandava um meme muito sutil e sagaz sugerindo que neguinho só estava ali pra pegar mulézinha de nicho, mulézinha feminista top (subvertendo linguisticamente várias expressões que algumas tribos vieram a associar à ingenuidade e burrice brasileiras).
Um meme de coletor menstrual coletava lágrimas de homens.
Eu estava crescentemente incomodado com a discussão, quando avistei do outro lado da rua um homem de óculos escuro, musculoso e sombrio, que me falou da necessidade política de diferenciarmos entre a comodificação de afetos e desejos e se utilizar desses afetos da maneira efetivamante política, e o que é política afinal?, e que talvez ninguém na verdade possa fazer nada porque a internet onde 90% dos usuários deposita vida e tempo é feita de empresas user-friendly que fornecem uma rede de retroalimentação onde você é funcionário voluntário de corporações cujo lucro se dá na proporção do teu livre-arbítrio. Falava como um erudito porém livre de jargões, e em sua fala as tags da discussão eram subvertidas e ressignificadas, como um bricoleur em êxtase articulando símbolos ontologicamente nulos do alto de um lixão.
Ele disse que meu espírito abandonaria a superfície da web 2.0, e iria parar em bancos de dados escusos, de interfaces incompreensíveis, em bunkers americanos enterrados próximos ao centro da Terra, onde ela seria picotada por processos ainda não mapeados, e seria avistada pela próxima e última vez em um anúncio que prometia transformar meus “gostos pessoais insignificantes em potência política”, um anúncio pensado por um garoto prodígio da publicidade, cuja ideia surgira após o cruzamento de informações que um dia foram minha alma com as de outras almas novas e imberbes que se atormentaram diante de telas, quando vivas.
Eu ainda tentava capturar o Gyarados, que dançava em todo seu esplendor azul em frente ao batalhão da PM, quando o homem me perguntou por que eu tirava fotos dele. Expliquei a situação e disse que o Gyarados sempre fora meu Pokemon favorito desde a infância, quando evoluí, com paciência e dedicação que nunca mais soube empregar em nenhum outro aspecto da minha vida, minha primeira Magikarpa num surrado Game Boy.
O homem, que revelou ser um sargento da Polícia Militar, sorriu e disse: “Hobbes não é nada além de Rousseau refletido em um espelho negro.”. Eu não entendi mas ele disse que saíaa de si quando celulares eram apontados para ele, e que as pessoas precisam parar de generalizar as coisas, pois tudo dependia de pontos de vista, ao que eu indaguei: depende de quem te olha ou depende de quem você olha? 
Diante da minha pergunta o PM se alterou e cismou que eu carregava drogas na mochila e puxou sua arma mas eu o acalmei dizendo que já estava morto há muito tempo, desde o dia que em comprei meu celular, e que só Pokemon havia conseguido instilar em mim um mínimo de vida, apenas o bastante para conseguir sair de casa novamente, e então me vi redescobrindo a rua, agora com maravilhosas possibilidades de interação e aventura, e se meu olho humano era falho e não conseguia enxergar o que meu celular enxergava, pior pro olho, e que inclusive eu havia conhecido minha primeira e única namorada em uma dessas andanças, uma menina mais velha que eu, que gravava vídeos sobre games antigos, muito inteligente e muito bonita, por quem me apaixonei ao assisti-la discorrer sobre as relações entre memória afetiva e os velhos gráficos poligonais das antigas gerações, e sei que ela também não saía de casa, seu quarto era abarrotado de itens e livros, sua maquiagem renovada a cada vídeo, eram dois por dia, seus trejeitos nervosos e ansiosos como se falasse de uma só vez para a câmera tudo que foi incapaz de falar em suas relações pessoais inexistentes ao longo de toda a vida, e já havia dito inclusive que morria de medo da rua, que a rua era amedontradora e aterrorizante, ela havia dito isso olhando nos meus olhos ou talvez nos olhos dos seus 100 mil seguidores, entre os quais eu a assistia com tamanha intensidade que era impossível que ela não sentisse meu olhar, e não deu outra pois um dia eu a encontrei numa praça andando de um lado para o outro com o celular na mão, e a partir daí começamos a andar juntos, ela na frente e eu atrás, e então praças, viadutos e muros, e a cidade em si, tornaram-se as dobras do nosso mapa particular, num amor tão privado que ninguém mais tinha acesso, da mesma maneira que não enxergávamos nada sem nossos celulares. Meu amor crescia na proporção em que diminuía o medo, que no fim se revelou tanto realidade aumentada quanto o próprio jogo.
Tudo isso eu disse ao sargento. Seja como for, à minha morte seguiu-se uma comoção midiática nacional por parte de moradores da Zona Sul e campanhas contra Pokemon Go à favor do retorno da empatia humana sem mediação da tecnologia, que duraram duas semanas. Minhas últimas lembranças são da gargalhada do sargento, e de ter capturado o Gyarados, que foi como lembrar um sonho distante, e a quem chamei de nada menos que Albert Einstein.

sábado, 3 de setembro de 2016

Essa lanchonete costumava ser barata

e escura como uma caverna
agora reformada, pronta para os turistas
móveis vermelhos e azuis
sob constelações de luzes
conseguiram apagar
todas as manchas


no cardápio o sanduíche mais barato
superfaturado
não deixa sombra de dúvida
tudo ao meu redor desmorona
lentamente


a varandinha cria uma falsa
perspectiva da rua à noite
em duas dimensões
uma pintura noturna onde homens
bem vestidos parecem ir de encontro
aos mendigos emergidos
com a chegada dos turistas


uma mãe negra enterrada em cobertores
grita com um bebê de colo
um turista deixa uma nota
carregando caixas de chicletes
entram as filhas


que sol nenhum
poderia apagar


alcanço minha carteira
onde não há dinheiro algum
a menina diante de mim
magra e desconfortável
no corpo espichado do dia para a noite
espera me olhando

envergonhada e digna

ela não quer dinheiro
só um doce
que mando incluir na conta


me ponho a fazer cálculos
e quando ela reaparece
e diz, tremendo de tímida,

a boca cheia de doce
obrigada, moço
chego ao valor exato
do desespero

quinta-feira, 9 de junho de 2016

Para Helena da operadora NET

Oi, é ele de novo.
Como você pode esquecer a cada duas horas
quem há semanas ouve sua voz
e te diz não?
Ou talvez você só queira ouvir a minha?
Ouvir não todos os dias
e sentir, como um apaixonado,
a autoestima baixar na mesma medida
em que cresce o sofrimento engrandecedor?
À minha voz parece não seguir
necessariamente a memória de mim;
Talvez seja que não existe isso de non sequitur quando se ama.
É disso que se trata, no fundo, então, Helena?
quando você me pergunta se eu “amo” estar conectado
e vem me oferecer maior capacidade
de velocidade, conexão mais estável
e promoções de pacotes infindáveis
de dados a fim que eu diminua todas as distâncias
imagináveis entre mim e pessoas queridas,
objetos de obsessão remota,
tragédias e tristezas patenteadas, correndo em cabos corporativos
no fundo do oceano
chegando ao meu braço em riste, cara iluminada
e desembocando no meu sangue?
De fato, eu bem poderia ser
sua vítima perfeita. Sua voz é bonita e sou
um funcionário do mês exemplar,
recebo o pagamento direto na veia.
Só que, para mim, são outros tempos,
então não ligue novamente, Helena.
É vício, não amor.
E assim como o viciado é um refém,
essa será sempre a condição
daqueles que decidirem, infelizmente,
analogicamente, eliminar a distância até ele.
Já que você ouve bem, vou explicar
por que me ligar não vale a pena.
Uma dia, Helena, quando eu estudava alemão
chegou a minha vez num jogo; fechei os olhos
e uma amiga colou na minha testa um post-it
com a palavra Dichter. Todos aprovaram
a dificuldade e a ironia da palavra
em relação ao tema “Arbeit”, trabalho.
– Sind meine Hände wichtig?
– Natürlich! Du arbeitest mit deinen Hände!
– Arbeite ich zu viel?
– Das kommt darauf an.
– Erhalte ich viel Geld?
– Nein, kein Geld.
Kein Geld, Helena,
mas não por eu estar aqui distribuindo
as ironias de ser-me oferecida
mais internet
– por overdose de sentido eu não morro –
em versos,
enquanto eu poderia
(diz a fórmula de um CEO para ficar rico na internet)
[Limpa a garganta; ruído de telefonia sucateada]:
“pegar um desejo humano,
preferencialmente um que exista há muito tempo...
e usar a tecnologia para simplificar tudo.”
E sim porque justamente peguei um desejo humano
que existe há muito tempo, e que
flui na forma simplicíssima, altamente tecnológica
de luzes e sons. Eu o peguei como a uma doença,
e o organizo aqui como ele o foi
[Ruído de mídia obsoleta]
da primeira vez, milênios atrás, precisamente de forma a
existir uma tecnologia
que fosse capaz de cantá-lo
através desse teu nome antigo,
Helena,
e o que ele destruiu e criou.




segunda-feira, 23 de maio de 2016

Carta de amor e política (pt. 2)

Março de 2016

Não só os vidros para o lado de fora do bar, absolutamente tudo você transforma em cerca. Sei do jogo que você menciona, entendi tudo. Depois de jogar, você sai na rua e a experiência do jogo fica guardada, saudosa, é um lugar pro qual você gostaria de voltar, e não uma camada que você transpõe à rua. Um castelo em ruínas ao por do sol em CGI não tem nada a ver com uma construção na rua, com o centro da cidade, com uma formação específicas de pedras na praia, e o por do sol é invisível, mera astronomia, mapeada, explicada. Pessoas à sua volta, cheias de expressão e realidade, não são parecidas com pessoinhas em pixels, que você pode preencher. Ambos são lugares diferentes. Os mendigos zumbis, pelo contrário, são mais reais que os que te interpolam na rua e te enchem de culpa. A esquerda é brasileira, o brasil é brasileiro demais, e os gifs da internet não são brasileiros, são coisas de internet; ou então o brasil real só existe na internet. Cercas por todos os lados. Para não dizer de relacionamentos com outras pessoas. Você nem tem mais expectativas pois sabe no fundo da alma como tudo é decepcionante. Você cria uma razão e a transpõe para tudo – a única coisa que se relaciona com as outras – e compulsoriamente procura os sinais dessa razão que você depositou em cada experiência, até encontrar. E então se decepciona e se orgulha: estava mesmo certa, afinal. Caso não a encontre, tudo é aterrorizante e você recua com medo, como se pulasse a cerca. Seu medo é reconfortante.

Tenho desinteresse e indiferença por tudo que não é você, mas assim não dá pra viver, então me obrigo a criar links, a conectar tudo. Olha.

Eu esperava um manto sagrado de verdade, mas o que vi brilhando num post sobre as manifestações era só uma camisa do flamengo. Alguém denunciava a blasfêmia de se vestir com uma algo historicamente pertencente ao povo numa manifestação inegavelmente branca – um flamenguista reclamava. Lembrei de ti e temos esta que segue, que escrevo enquanto tento comer um pão na chapa como você, um triângulo de torrada abocanhada desaparecendo como num jogo, enquanto olho a rua onde ontem mesmo ateus e cristãos dançavam tentando despachar a entidade da corrupção. Corrupção, para eles, é obra humana, mas o ato coletivo, compartilhado, era ritualístico, e nunca conseguirão despachar algo que nem sabem aonde pertence.

Nesses momentos até mesmo a camisa do flamengo brilha, e as manifestações são exconjuros coletivos. Por toda parte vejo os canais que conectam as coisas, ando na rua e ouço vozes de TV vindo da malha de cabos de energia nos postes. O Brasil está viciado em notícias, como aguentam tanta notícia, na verdade feitiços impedindo que o enfeitiçado veja o canal em cuja água nasce a miragem dos fatos. O facebook é uma assinatura de jornal compulsória a que todos somos obrigados, e o único contrafeitiço que conheço é deixar-se tomar por este estado em que o canal, os canais que conectam, se tornem visíveis.

Minha internet esbarrou na do flamenguista revoltado, e na falta das forças da lei de outrora garantindo que ninguém deixe de ver o sagrado, o encontro dessas duas internetes, entre mundos inconciliáveis, revela a possibilidade de um canal.

Foi nas manifestações de março passado, há exatamente um ano, que descobri isso. Escrevi uns versos onde eu destacava o canal através do qual eu pude saber da existência dessas pessoas na rua. Apenas tentei destacar o tom, a textura, a materialidade daquilo que eu não conseguia – que o espectador não consegue –deixar de decodificar em sentido, em “informação sobre o Brasil”. Bastava transformar em escrita o que era dito na TV que o canal entre a materialidade e o sentido se revelaria. Mas, ao invés de deixar que o canal de comunicação trazido à tona bastasse por si próprio, cometi o erro de produzir um argumento explícito, embora também tendo a ver com comunicação e meios e canais, afirmando que toda guerra de comunicação não passa de linhas de ideologia, morimbundas, tentando aumentar suas fileiras.  Hoje meu argumento fede a indiferença e insignificância. Mas ainda gosto de transformar gente de vídeo de internet em frase, como se destituídas da confusão de serem pessoas e fossem reduzidas às suas vozes e seu sentido, que são o que realmente importa nessa guerra.

Você não discordaria que hoje a internet está ligada ao desejo. Ela responde ao teu impulso, e você tem o impulso dela. A velocidade de conexão equivale à velocidade do desejo. E teu corpo é esse meio.

Quando acabou a luz, aquele dia, e toda conexão foi cortada, você se irritou. Não com o governo, não com as empreseas de energia. Você não jogou alguém pra arder na fogueira, você simplesmente se deixou queimar.  As estrelas apareceram mas você se cegava com a luz do computador movido à bateria, olhos iluminados no breu, assistindo ao último reservatório de energia do bairro se extinguir. Não quis saber do que acontecia lá em baixo. Da janela eu ouvia gritos nas ruas, e falei para me sobrepor ao medo do escuro:  “basta a pequena ilusão de termos voltado à pré-história que as pessoas já se aproveitam do teatro que é a falta de energia”. Começam a sair na rua se achando na festa da vila, lanternas de led dos celulares como tochas. Um casal passou de bicicelta, gritando e rindo, curtindo a luz dos carros que se viravam como podiam sem os semáforos, promessas de caos, nostalgia prematura pelo pós-apocalíptico, na verdade saudade do netflix. (Sei que isso é o meu vício em luz falando por mim.)

As notícias do poder perderam toda a importância e adquiraram a qualidade de um sonho esquecido: sem energia, a distância infinita entre nossa província e o Império foi restaurada, e portanto não tínhamos nada a ver com isso, saiamos na rua e zoemos a porra toda.

O que é a rua? A rua sem luz é a rua sem política. A rua sem luz não é mais apenas a distância terrível, infinita, entre A e B, que você é obrigada a percorrer e sofrer. Todo o seu problema com a política se resume no seu medo da rua, revertido no seu desejo de permanecer entre quatro paredes, banhada por luz e informação.

Eu entendo exatamente o que é essa coisa da rua que se aloja no teu corpo, mas não vou cometer a indelicadeza de mencioná-las.  Sei que no fundo você se declara de esquerda, mas a maneira com que você foi levada a se relacionar com a bandeira máxima deles te faz se sentir hipócrita. Acho que não dá pra dizer de todo mundo que vomitam política tão literalmente.

Se te escrevo isso é porque sinto que não tenho nada a dizer aos meus amigos, todos já estão certos de sua política, e é inútil gastar meu tempo produzindo coisas que, na melhor das hipóteses, só vão reiterar a certeza de quem já está certo. Não que não seja inútil de qualquer maneira. Mas você tem algo a teu dispor algo que quase ninguém tem. Do seu terror com a política para o estado de graça é só um salto.

terça-feira, 3 de maio de 2016

Carta de amor e política (pt. 1)

"É o seguinte, e não espero que você entenda. Acho que sou de 'esquerda' mas antes de você deixar isso afundar, digo logo que não me sinto autorizada a ser nada, não sou nada. Não consigo lidar nem com dois quarteirões sem sentir uma fortaleza se armando aqui dentro. Preciso mesmo, o tempo todo, me defender. Até na padaria, um caminho seguro e tranquilo, e lá vou eu, armada até os dentes. Sorrio, digo boa tarde, boa noite, sou educada, sou prestrativa, mas estou cem por cento do tempo atenta ao canto de olho, meu corpo todo empenhado em vigiar invasões nas fronteiras. Chego em casa direto para o banheiro e vomito, suando, lacrimejando. Tento vomitar em silêncio, não quero ninguém vindo segurar meu cabelo. No curto período de alívio enquanto meu estômago se prepara para a próxima, me armo novamente contra as risadas dos meus pais cozinhando o jantar, que nesse estado parecem escárnio puro e simples, usurpadas em seguida por uma cara de súplica fingida. A culpa é imensa. Querem a comida que não vou comer, e quem tem fome não distingue entre fingir e suplicar de verdade, são esses que seguram meu cabelo, rindo do meu estado.

Lavo a boca e enxugo o suor, me sento à mesa e arranjo um sorriso na cara. Tento conversar mas só consigo reagir, responder, regurgitar educação. A comida é posta na minha frente e o cheiro imediatamente me enjoa. A cada riso, a cada dente banco mostrado, a cada pergunta sobre minha vida, me sinto mais fraca. Engulo a comida sem mastigar, ponho na verdade papel higiênico molhado na boca. Não tenho fome. Precisaria comer por respeito à fome que deveria sentir, mas tenho que respirar fundo para sufocar o enjôo com muito ar, pois ainda tenho pulmão jovem e saudável. Devo manter a barriga vazia para poder reclamar. Nunca pus um cigarro na boca, e o ar que meus pais soltam quando riem é o ar que me é roubado por essas gargalhadas, que imagino enquanto olho o prato para não olhar para eles .

Estou tentando ser sincera. Que direito meu corpo tem de se revoltar só porque algo dentro dele decidiu se afundar por vontade própria? Que tenho eu a ver com isso?

Sim, meu portugês é “bom”. Saiba que, apesar do orgulho com que exibo minhas notas na mesa de jantar, sou a pessoa mais facilmente educável do mundo. Não tenho nada dentro de mim a não ser comida recusada e muito espaço de sobra. Assim se aprende qualquer coisa.

Na rua é a mesma coisa: “aprendo” o que você ignora.

Quando não posso mais ficar na mesa fingindo estar bem, peço licença e levanto. Nesse momento as risadas cessam e os dois me olham contornar a mesa. Quando vou deixar a sala, meu pai fala (imagino) para seu prato: “Criatura egoísta”. Lavo a louça e vou para o meu quarto e tranco a porta com força, para parecer egoísta mesmo, para repetir na minha própria língua, segundo minha própria vontade, as palavras dos outros que se meteram no meu estômago (ao lado das minhas outras palavras, do português inteiro.)

Sou realmente a pessoa mais egoísta que já vi, agora eu que digo isso.

E é nesse estado que ligo o videogame e tem início o processo de esquecimento. O enjôo aos poucos desaparece. Sim, em algum momento vou ter que sair na rua novamente, e penso, sim, claramente, que não é isso que vai me ajudar. O segredo é não dar muita atenção a esse pensamento, deixá-lo passar varado como um pássaro indo cuidar da sua vida. Que tenho eu com isso?

Jogo um jogo — você não conheceria mesmo se eu falasse; aliás, te mandar isso é como escrever para a própria língua portuguesa, monstruosa, antiga, às vezes domável e amável, mas que se esforça para se enfeiar de modo a corresponder aos novos tempos — jogo um jogo que contém muitos, muitos mendigos, é uma cidade tomada por mendigos, e claro que eles querem me fazer mal. E não sinto nada, nada. Eles são legião, mas eu também sou. Agora me sinto a porta-voz do meu povo, um povo que não sente nada, que só joga, e que no tempo livre domina seus meios de comunicação, povo ao qual vocês prestam respeito todos os dias, vocês inteligentes.

É mentira, sentimos muitas coisas. Veja: não ando mais de bicicleta, não vou mais ao cinema, faz anos que não vou à praia. Nenhuma dessas coisas se compara ao que sinto quando jogo. Viu? Tenho certeza que não.

De resto, tudo que eu sinto dou descarga.

Vou te contar uma perversão: quando vamos comer fora, insisto sempre que sentemos do lado de dentro dos restaurantes e bares. Na verdade, entro direto, atravesso as mesas ao ar livre, passo pelas portas e fico o mais longe possível dos vidros que dão para a rua, enquanto meus pais ainda procuram um lugar com uma vista bonita. Se acontece deles ganharem e eu não tenho mais desculpas, e tenho que sentar do lado de fora, passo o resto da noite me defendendo, sinto concretamente meus reflexos engatilhados nas minhas juntas. Já parou para pensar nos reflexos? Nunca faça isso, siga meu conselho. Caso decida prestar atenção neles, pensar neles, eles que justamente prescindem de qualquer pensamento, vai acabar descobrindo que nosso corpo é de fato uma fortaleza automática, aperfeiçoada depois de muita bala a ponto de agir sozinha sem a intenção do mestre, que de todo modo só possui seu alto cargo por causa de acordo político.

Não me diga que não sou “afetada” pelas coisas, só porque estão separadas. O afeto que vocês falam é só um afeto entre muitos. Por causa dos meus vocês me expulsariam do clubinho, sei bem.

Mas te mando isso na pausa do jogo que estive jogando há duas horas, já estou distante do que me fez começar, e não vou reler nada.

Você me perguntou porque não me importo com política. É isso. Sinto que deveria terminar catando as peças de um coração no teclado, mas acho que você o receberia empapado em bile. Tchau."

Parte 2

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

Kafka sobre a psicanálise

Dizes, Milena, que não o entendes. Procura entendê-lo chamando-lhe uma enfermidade. É uma das numerosas manifestações patológicas que a psicanálise acredita ter descoberto. Eu não o chamo enfermidade e acredito que a parte terapêutica da psicanálise é um tremendo erro. Todas estas chamadas enfermidades, por tristes que pareçam, são manifestações de fé, esforços de pessoas infelizes para se agarrarem a alguma base maternal; é assim como a psicanálise considera, por exemplo, que a origem das religiões é exatamente isso que, segundo eles, constitui a origem das "enfermidades" do indivíduo; por certo, hoje a maioria carecemos de um espírito religioso comum, as seitas são inumeráveis e reduzem-se a pessoas isoladas, mas talvez isto aconteça somente diante do olhar dominado pelo presente. 

Não obstante, essas tentativas de procurar um ponto de apoio, que conseguem uma base realmente sólida, não constituem posse isolada e intercambiável das pessoas, porém algo pré-fabricado em sua natureza, algo que continua criando, sempre na mesma direção, essa natureza (e também esse corpo). E esperam curar isso?

Em meu caso é preciso imaginar três círculos, um interior, A; depois o B, depois o C. O núcleo A explica ao B porque esta pessoa deve atormentar-se e desconfiar de si mesmo, porque tem que renunciar (não é nenhuma renúncia, o que seria muito difícil, é somente a necessidade de renunciar), porque não pode viver. (Nesse sentido, por exemplo, não estava Diógenes gravemente enfermo? Quem não teria sido feliz sob a irradiação do olhar de Alexandre? Mas Diógenes rogou-lhe desesperado que lhe restituísse o sol, esse sol grego, terrível, interminavelmente ardente, enlouquecedor. Esse barril estava cheio de fantasmas.) A C, a pessoa ativa, já não se lhe explica nada, apenas recebe ordens de B. C age sob intensa pressão, com o suor frio da angústia (existe outro suor que brote na fronte, nas faces, nas fontes, na raiz do cabelo, enfim, por toda a superfície do crânio? Assim é o de C). De modo que C age mais por temor que por compreensão, confia, crê que A explicou tudo a B e que B compreendeu tudo bem e lho transmitiu bem.

Franz Kafka - Cartas a Milena  (Editora Itatiaia)

terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

WPP

(interlocutores omitidos)

– Eu me achava velho quando escrevi na internet anos atrás:
“Sofra, mas sofra logo, antes que existam contas a pagar”

Quando sofrer era na internet
Ou para a internet
Ou diante da internet
“Sofrer”
A diferença entre hoje e então 

Além de não se precisar mais ir ao sofrimento
É que então sofria-se, por assim dizer, 
De forma desengonçada e espaçosa.
E hoje, justamente quando ela é onipresente e onisciente,
Eu começo a senti-la como um mero objeto
Que se usa ou não.
Um troço que existe no mundo assim como caneta e cortador de unha
Que se usa ou não.
E meu sofrimento na Internet sai espaçoso e desengonçado,

Um estagiário precarizado, grisalho
Batendo ponto na Internet.
Aqui, adolescentes são os funcionários do mês.

– Já que você não quis vir jantar comigo, 

Prometi a mim mesmo que comeria sozinho. 
Realmente sozinho.
Mas cá estou, digitando essa mensagem.
Na mesa ao lado, uma moça mexe no celular.
Onze da noite e ela com celular e coca-cola e um prato de peixe 

Intocado,
E ela chorando com os polegares como se jogasse Game Boy.
Afasto esse climão pré-fabricado de solidão urbana
Quando um senhorzinho com camisa da CBF começa a gritar
 putaria 
Na calçada, resolvendo meu problema.
Signos de solidão urbana engolidos por signo maior.
O mundo deu um passo para trás
E você aguente o textão.

– Tem-se tentado entender o Eu na internet com jargões paulistanos
Marketing Pessoal, Social Media
Todo mundo se vendendo o tempo todo
Se é de graça, você é o produto
Assinamos todos um pacto 
em troca de existência e narração
E tudo o mais.
Que seja, mas para existir
Tem que saber mostrar a sua irrelevância no bom sentido
No sentindo engraçado
No sentido internet
O que acontece na sua vida offline é irrelevante
Quanto mais deprimidos mais internet, sim.
Mas tem que ter tem e tem que pá.

– Não aguento mais peixe morto. 
Ser ignorado me faz pensar em cartas. 
Uma carta é lenta e lúdica, enquanto nós somos imediatos,
Você disse uma vez.
Olhe uma carta por muito tempo 
E a nossa troca parecerá ficção científica, realmente.
Mas carta era ponte entre alma e texto.
(Ainda que essa chuva nos iluda com miragens de pontes sob nós)

Enquanto nós nos escondemos. 
Na carta, esconder-se custava caro.
Aceito que tenha havido quem preferisse não atravessar a ponte 
Parar no meio do caminho, encostar na beirada 
E contemplar as águas correndo lá em baixo
Feito um suicida.
Uma vida escrevendo mensagem de texto

Retirando do bolo de traumas de infância
Estratégias e técnicas de desvio de atenção,
Como se obrigasse seu mensageiro a atravessar o Império
Carregando notícias falsas e incendiando pontes.
Como não se sentir esvaziado,
Sugado de vida, de alma
Depois de uma vida sabotando pontes
Com precisão militar?
É esse o desperdício.
Não é o tempo, é isso que se perde.

– Olha, difícil saber.
Achei esse um bom parâmetro, aliás:
Ela sofre na internet ou não?
Tempo!
Ela posta sofrimento e pede sentimento
Ou posta felicidade na internet?
Felicidade é sempre mais sutil

Em se tratando de alma.
Porque a internet vira a ponta de um iceberg
Que por descomunicação e arrogância esbarra em você
Como ingenuidade, tosqueira.
Hoje, que Internet não é feita por curadoria própria,

Erguida nas adjacências da própria alma? Não a sua.
Ela, não sei se sofre, pois não posta.
Tem a vibe, mas não posta.
Difícil essa idade sofrer sem postar.

- “Escrever cartas é na verdade se envolver com fantasmas; não só o fantasma do destinatário mas também o fantasma de si próprio. Pode-se pensar em alguém distante e pode-se agarrar a alguém que está perto – todo o resto está além das nossas forças. Escrever cartas, por outro lado, significa expor-se aos fantasmas, que estão ansiosamente esperando por isso como famintos. Beijos escritos nunca chegam ao seus destinos; são bebidos pelos fantasmas no caminho. É esse amplo alimento que os possibilita se multiplicar. De maneira a eliminar esse poder dos fantasmas e conseguir alguma comunicação verdadeira entre humanos, foram inventados trens, carros, aviões – mas não adianta mais. Os fantasmas inventaram telégrafos e telefones; estão calmos e mais fortes. Eles não morrerão de fome, mas nós pereceremos."

– Falemos claramente.
Talvez você, seus nervos,
Tenha captado os índices do meu corpo que dispus aqui.
Assim como achei que houvesse processado os teus.
Mas estamos nos domínios do fantasma. 

Não me peça mais isso.
Na idade média, signos mágicos eram inscritos em papéis
Que, ao serem ingeridos, curavam doenças.
Comer um signo é absurdo?

Por acaso se come alguma outra coisa?
Papéis, mágicos ou não, são fáceis de colocar na boca e engolir.
Se isso te parece um absurdo
Que dirá de nós, que nem comer inscrições do nosso corpo

Nós podemos?

– Ingenuidade, sim, 
Porque no fundo a sua raiva diante dessas pessoas,
Tão ingênua quanto a ingenuidade que você critica,
É porque elas não dominam as ferramentas tão bem quanto você. 
Mas quem domina quem? 
Você as está usando ou sendo utilizado? 
Daqui, o que vejo é o seguinte:
Você foi obrigado a dominá-las. 
Percebendo desde cedo que viveria para sempre aqui,
Foi preciso aprender a apertar os botões da maneira certa
Unicamente para que a interface respondesse
Mais ou menos de acordo com a sua vontade. 
E foi longo o aprendizado. 
Sua adolescência, você não tem coragem nem de lembrar. 
Antes de reclamar, pense nas suas origens, 
Pense no seu aprendizado,
No quanto você foi completa e irreversivelmente 
dominado.