terça-feira, 27 de setembro de 2016

A mensageira

A essa foto e a essa voz
eu pergunto ––
deixa eu perguntar, por favor
O que você pensa? ––
O que pensa sobre –– sobre isso aqui?

Sobre fotos e vozes e vida
saída assim do nosso corpo remoto, mas —
Melhor não.
Isso deveria nos aproximar ou pelo menos
deveria ser não de um para o outro mas de um com o outro.

Já tu, se perguntasse, eu diria que
eu penso bastante mas ––
como posso falar?
Se ao menos você pudesse falar.

Pra mim é simples.
Não é que eu queira isso ou aquilo especificamente embora sim.
Ou porque estou aqui
E não lá fora ou mesmo aí

É só que a minha vida
agora é toda feita aqui
E tu tão remota
parece também menos lá ou aí do que aqui.
Mas tudo que tu me manda de ti
de ti se retrai e vira em mim
ecos que repetem distâncias
em vozes que só falam aqui.

E no entanto sei que isso com que converso ––
sei que tu
és uma janela para lá
para ti, para esse tu
para a segunda pessoa do singular
uma segunda pessoa singular, não eu e não outra
nem tua voz ou tua foto
mas tu

Enquanto isso ––
tu tens que mudar de vida – não aqui mas ––
é o eco

Lá, eu disse ao médico:
Doutor, engoli uma pedra de ar
A chaleira que apita explodiria se eu deixasse?
Mas não é só ar?
Doutor, deixa eu te perguntar ––




















quarta-feira, 7 de setembro de 2016

No dia da minha morte encontrei um Gyarados em frente a uma delegacia da Polícia Militar

Eu atravessava a rua trocando entre aplicativos, minha atenção voltada para uma discussão política no Facebook travada com memes. 
Um adolescente precoce mandava um Karl Marx portando um iPhone porque nenhum discurso de esquerda possuía efetividade se embrenhado no símbolo máximo do capitalismo.
Um calouro de sociologia enviava uma caricatura com elefantíase porque ninguém aqui havia lido uma linha de Marx que não seja o Manifesto Comunista. 
Um mestrando em Comunicação Social da PUC mandava o Mark Zuckerberg sorrindo como um chefão do mal.
Um futuro TI utilizava um antigo meme de um rapper americano envolvendo Edward Snowden e Mark Zuckerberg para demonstrar, pelo conceito de strange loops, que independente de ideologias ou de mensagens, o Facebook sempre se refereria de volta ao Facebook.
Um professor de literatura mandava uma foto não-solicitada do pau, gerando uma memorável marchinha de carnaval do outro lado da Internet. Ele aproveitou o ensejo para realizar um ataque mordaz ao cânone ocidental e às contingências valorativas, por escrito mesmo, que ninguém leu.
Um vestibulando colocava um óculos descendo sobre a cabeça do dito pau.
Uma aluna de Artes Plásticas floodava o post com um arsenal de fotos de paus colhidos no Google Imagens, diante dos quais o estudante de engenharia, depois de muito implorar pela sanidade de sua heterossexualidade, abandonou a discussão.
Uma funcionária do Starbucks trazia Simone de Beauvoir fumando um cigarro triunfalmente.
Um famoso tuíteiro mandava um print onde sugeria uma ação através do qual o copo descartável do Starbucks equivalesse a um muro do centro da cidade em termos de superfície ou mídia de expressividade política.
Um jogador de League of Legends enviava um meme provavelmente forjado na Tábua de Esmeralda do Chapolin Colorado dizendo não fazer sentido chamar Bolsonaro de nazista e idolatrar a Simone de Beauvoir.
Um mestrando em filosofia mandava uma xilogravura do século XIV para expressar que Jorge Ben era a figura mais importante que esse país já viu e com quem as décadas vindouras precisarão necessariamente lidar se quisermos sair dessa.
Um homem mandava um machão rindo dizendo que iria mostrar a elas o Segundo Sexo.
Uma conhecida poeta mandava um meme muito sutil e sagaz sugerindo que neguinho só estava ali pra pegar mulézinha de nicho, mulézinha feminista top (subvertendo linguisticamente várias expressões que algumas tribos vieram a associar à ingenuidade e burrice brasileiras).
Um meme de coletor menstrual coletava lágrimas de homens.
Eu estava crescentemente incomodado com a discussão, quando avistei do outro lado da rua um homem de óculos escuro, musculoso e sombrio, que me falou da necessidade política de diferenciarmos entre a comodificação de afetos e desejos e se utilizar desses afetos da maneira efetivamante política, e o que é política afinal?, e que talvez ninguém na verdade possa fazer nada porque a internet onde 90% dos usuários deposita vida e tempo é feita de empresas user-friendly que fornecem uma rede de retroalimentação onde você é funcionário voluntário de corporações cujo lucro se dá na proporção do teu livre-arbítrio. Falava como um erudito porém livre de jargões, e em sua fala as tags da discussão eram subvertidas e ressignificadas, como um bricoleur em êxtase articulando símbolos ontologicamente nulos do alto de um lixão.
Ele disse que meu espírito abandonaria a superfície da web 2.0, e iria parar em bancos de dados escusos, de interfaces incompreensíveis, em bunkers americanos enterrados próximos ao centro da Terra, onde ela seria picotada por processos ainda não mapeados, e seria avistada pela próxima e última vez em um anúncio que prometia transformar meus “gostos pessoais insignificantes em potência política”, um anúncio pensado por um garoto prodígio da publicidade, cuja ideia surgira após o cruzamento de informações que um dia foram minha alma com as de outras almas novas e imberbes que se atormentaram diante de telas, quando vivas.
Eu ainda tentava capturar o Gyarados, que dançava em todo seu esplendor azul em frente ao batalhão da PM, quando o homem me perguntou por que eu tirava fotos dele. Expliquei a situação e disse que o Gyarados sempre fora meu Pokemon favorito desde a infância, quando evoluí, com paciência e dedicação que nunca mais soube empregar em nenhum outro aspecto da minha vida, minha primeira Magikarpa num surrado Game Boy.
O homem, que revelou ser um sargento da Polícia Militar, sorriu e disse: “Hobbes não é nada além de Rousseau refletido em um espelho negro.”. Eu não entendi mas ele disse que saíaa de si quando celulares eram apontados para ele, e que as pessoas precisam parar de generalizar as coisas, pois tudo dependia de pontos de vista, ao que eu indaguei: depende de quem te olha ou depende de quem você olha? 
Diante da minha pergunta o PM se alterou e cismou que eu carregava drogas na mochila e puxou sua arma mas eu o acalmei dizendo que já estava morto há muito tempo, desde o dia que em comprei meu celular, e que só Pokemon havia conseguido instilar em mim um mínimo de vida, apenas o bastante para conseguir sair de casa novamente, e então me vi redescobrindo a rua, agora com maravilhosas possibilidades de interação e aventura, e se meu olho humano era falho e não conseguia enxergar o que meu celular enxergava, pior pro olho, e que inclusive eu havia conhecido minha primeira e única namorada em uma dessas andanças, uma menina mais velha que eu, que gravava vídeos sobre games antigos, muito inteligente e muito bonita, por quem me apaixonei ao assisti-la discorrer sobre as relações entre memória afetiva e os velhos gráficos poligonais das antigas gerações, e sei que ela também não saía de casa, seu quarto era abarrotado de itens e livros, sua maquiagem renovada a cada vídeo, eram dois por dia, seus trejeitos nervosos e ansiosos como se falasse de uma só vez para a câmera tudo que foi incapaz de falar em suas relações pessoais inexistentes ao longo de toda a vida, e já havia dito inclusive que morria de medo da rua, que a rua era amedontradora e aterrorizante, ela havia dito isso olhando nos meus olhos ou talvez nos olhos dos seus 100 mil seguidores, entre os quais eu a assistia com tamanha intensidade que era impossível que ela não sentisse meu olhar, e não deu outra pois um dia eu a encontrei numa praça andando de um lado para o outro com o celular na mão, e a partir daí começamos a andar juntos, ela na frente e eu atrás, e então praças, viadutos e muros, e a cidade em si, tornaram-se as dobras do nosso mapa particular, num amor tão privado que ninguém mais tinha acesso, da mesma maneira que não enxergávamos nada sem nossos celulares. Meu amor crescia na proporção em que diminuía o medo, que no fim se revelou tanto realidade aumentada quanto o próprio jogo.
Tudo isso eu disse ao sargento. Seja como for, à minha morte seguiu-se uma comoção midiática nacional por parte de moradores da Zona Sul e campanhas contra Pokemon Go à favor do retorno da empatia humana sem mediação da tecnologia, que duraram duas semanas. Minhas últimas lembranças são da gargalhada do sargento, e de ter capturado o Gyarados, que foi como lembrar um sonho distante, e a quem chamei de nada menos que Albert Einstein.

sábado, 3 de setembro de 2016

Essa lanchonete costumava ser barata

e escura como uma caverna
agora reformada, pronta para os turistas
móveis vermelhos e azuis
sob constelações de luzes
conseguiram apagar
todas as manchas


no cardápio o sanduíche mais barato
superfaturado
não deixa sombra de dúvida
tudo ao meu redor desmorona
lentamente


a varandinha cria uma falsa
perspectiva da rua à noite
em duas dimensões
uma pintura noturna onde homens
bem vestidos parecem ir de encontro
aos mendigos emergidos
com a chegada dos turistas


uma mãe negra enterrada em cobertores
grita com um bebê de colo
um turista deixa uma nota
carregando caixas de chicletes
entram as filhas


que sol nenhum
poderia apagar


alcanço minha carteira
onde não há dinheiro algum
a menina diante de mim
magra e desconfortável
no corpo espichado do dia para a noite
espera me olhando

envergonhada e digna

ela não quer dinheiro
só um doce
que mando incluir na conta


me ponho a fazer cálculos
e quando ela reaparece
e diz, tremendo de tímida,

a boca cheia de doce
obrigada, moço
chego ao valor exato
do desespero