terça-feira, 5 de julho de 2011

Dúvida

Consideremos esta garota, muito bonita, extrovertida e inteligente, 20 e poucos anos, participante ativa e conhecedora das particularidades linguísticas de diversas redes sociais, das quais recortaremos somente o Facebook (FB). São dez da noite de uma sexta-feira fria, e ela se sente sozinha. Possui muitos amigos no FB, mas só se considera realmente próxima de menos de 10% deles.

Em frente ao computador, FB aberto, ela está em dúvida entre duas combinações de roupas, qual delas a deixaria mais linda e sexy para a noite. Mas ela não é ingênua, sabe que não basta sair deslumbrantemente bela que assim encontrará alguém que fará todo o trabalho valer a pena. Ela simplesmente quer se sentir bonita consigo mesma, e, claro, quer que outros a desejem. Que a desejem, mas a combinação tem que ser tal que a cena se configure de uma maneira que ela pareça alheia à própria beleza, como se ela despertasse o desejo nos outros nossa, sem querer.

Ela separa duas peças de roupas e dois adornos de cabelo, ambos diferentes. Entre atualizar o site para checar se recebeu novas mensagens, entremeia olhadelas no espelho onde avista seu reflexo segurando a roupa à frente do corpo, verificando as diferentes possibilidades de combinação. A noite é fria, ela não se decide, e o trabalho de escolher as roupas, misturado a um sentimento de solidão e de falta de expectativas, provocam nela um cansaço prematuro.

Ela é o que chamam de moderna (palavra que ela ouve mentalmente com o R arrastado), sabe como uma mulher deve se portar e agir, e por ter o conhecimento do que é esperado dos homens em tempos atuais, sente que bem poderia desafiar certas convenções, por que não? E justamente no momento em que pensa isso, um outro setor da sua mente já ergue mil defesas, engatilha toda uma retórica, fica ouriçada esperando aqueles prováveis gatos pingados  que poderiam considerá-la vulgar ou atribuir a ela qualquer dessas qualidades que não se espera que alguém manifeste em público (público?). E as porcarias das roupas que não combinam!

Exaltada, ela volta-se bruscamente para o computador e escreve corridamente um post no mural do seu Facebook, lançando aos seus mais de 300 amigos a questão que a atormenta: deve ela escolher a roupa X ou a roupa Y com o adorno Z ou o adorno W, qual é mais sexy?

O post no FB rapidamente atinge mais de 40 comentários, em sua maioria amigas ajudando a encontrar a melhor combinação de roupas&adornos que causariam o efeito esperando nos homens nessa sexta-feira  gelada. Ela se sente ousada. Lê os comentários e discute com ambos os sexos, enfatiza que a combinação de roupas deve servir unicamente à função de deixá-la sensual. Ela estima que, além do que agora são 50 e poucos comentários, deve haver aproximadamente 35% do total de seus amigos no Facebook lendo o post sem se manifestar. Muitos deles homens.

Ela pensa que, se não o efeito esperado de ousadia, alguém poderia achar estranho uma garota escrever publicamente que precisa ficar absurdamente sensual -- e gosta disso. Consigo mesma, sabe que não precisaria de ajuda, poderia muito bem se vestir de maneira deslumbrantemente sexy sozinha. E também não haveria ousadia, nem ela desafiaria microcósmicas convenções sociais, fosse a questão discutida privadamente.

Levando em conta que ela considera a sensualidade uma arte que pressupõe altíssimos níveis de sutileza, que ela sabe que qualquer elemento autoconsciente destoando minimamente do conjunto poderia arruinar a ilusão de inocência e mistério necessária para compor plenamente a imagem em seu potencial máximo, desenvolva como estas condições se relacionam com a escolha de tornar pública a sua questão, e disserte sobre o efeito da explicitação dessa estratégia feminina na mente dos homens acompanhando em tempo real o problema no FB, perpassando por tópicos exaustivamente estudados em aula, e.g. “narrativização da vida contemporânea”, “construção e projeção de identidade virtual”, “pós-feminismo”, “saturação estética”, “tédio global”, “o meio como mensagem”.