quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Diário da queda


Mais uma que se perdeu no caminho.
__

Diário da queda é uma máquina simples, altamente eficiente, cuidadosamente construída, cujo design utiliza esteticamente desenhos estilizados de suas engrenagens. Seu funcionamento é parte de sua estética; sua estética é sua eficiência. No romance de Michel Laub, estamos sempre em movimento, sempre indo em frente, – uma ilusão criada pela repetição circular constante de seu funcionamento. Quando percebemos as curvas, é sempre parte do show. Desde o começo o narrador está inserido no, e colocando pra funcionar, o procedimento; não se pretende fora dele, não tem pretensão de criticar sua forma. Elogiar Diário da queda é elogiar o procedimento. 

Parte do procedimento são os subtítulos enganosos: “algumas coisas que sei sobre meu avô”, por exemplo, perpassa por diversos personagens, mas quem está mesmo em evidência é o narrador. É sempre sua história que avança, e o avô, assim como o pai e todo o resto, são tragados pela espiral de decadência e raiva projetada pela máquina. 

Há uma sensibilidade eficiente para a atividade mecânica de erigir listas, outlines, verbetes, definições –  dispositivos enciclopédicos em geral. O romance consiste de notas contendo fragmentos da vida do narrador e da genealogia da família, e a maneira como emerge uma narrativa entre um fragmento e outro é um dos exemplos da beleza da máquina. 

O “estilo direto”, combinado à escrita em fragmentos, é como se o narrador precisasse fixar rapidamente alfinetes no mapa da vida que lhe passa diante dos olhos. Há sempre algo de fugidio no fragmento, e, no caso de Diário da queda, isso tem a ver também com o caráter excessivo, over, do significante Auschwitz, cuja região no mapa está repleta de buraquinhos de alfinetes, testemunhas de falsos começos, remoções apressadas.

A importância de Auschwitz para o narrador é bem ilustrada pela noção matemática (ou solipsista; a máquina do romance de Laub é uma máquina mental, repleta de associações entre termos e caminhos falsamente enganosos) de que “nem a pobreza nem a dor são acumuláveis”, que Borges cita de Bernard Shaw na Nova refutação do tempo. É a ideia de que uma única experiência contém toda a experiência do mundo. No romance de Laub, o narrador só consegue compreender imaginativamente a dimensão de Auschwitz quando sofre (e pratica) suas próprias violências. Ao mesmo tempo, o romance se esforça em empilhar citações de Primo Levi de maneira a tentar dimensionar, via acúmulo, o horror. O que funciona tão bem via relativismo é apenas irritante quando há a repetição obsessiva da palavra Auschwitz. O mantra acaba servindo unicamente para expressar a ideia de que há um mantra na cabeça do narrador, de que o significante Auschwitz o persegue. 

Diário da queda encena a possibilidade da transfiguração genealógica do horror em formas mais banais de violência. Há o primeiro nível da experiência: o contato direto do avô com Auschwitz. Para o narrador, o fato do avô não escrever sobre Auschwitz em seus cadernos/enciclopédias idiossincráticas é reflexo da incomunicabilidade deste horror: os verbetes do avô são todos relacionados a como o mundo deveria ser de modo que eu consiga ficar sozinho sem ser perturbado. Há o segundo nível, o pai, que, depois do contato com os cadernos do avô, torna-se o pontífice contra o antissemitismo, o guardião da tradição judaica, sempre em risco de desaparecer, sempre renascendo e prosperando apesar das repetidas adversidades. E há o terceiro nível, o filho, o narrador, que resiste às propagandas do pai, que se rebela, que quer ter o direito às próprias experiências, que se apropria pateticamente dos sermões do pai e torna-se ele próprio gerador de um novo tipo de violência, movida pelo tríptico vergonha, culpa, raiva. A notícia, anos mais tarde, de que o pai desenvolverá a doença de Alzheimer chega para colocar em perspectiva o valor da permanência de todas essas experiências. Contra isso, aparecem os cadernos de memória do pai, uma tentativa não apenas de preservar as lembranças, mas de limpar os canais genealógicos, de selecionar as memórias que importam para uma vida sem violência. Diário da queda como que  que reprime, nas adjacências, esse horror, cuja imagem ideal seria a equação Auschwitz + Alzheimer. A violência aqui é sempre cometida contra uma memória, vide o ato, na opinião do próprio, mais ignóbil cometido pelo narrador: a vingança contra o amigo gói João, realizada na forma de um bilhete profanando a memória da mãe do amigo, morta no parto. A tudo isso, o narrador chama de “inviabilidade da experiência humana em todos os tempos e lugares.” 

Com a revelação do quarto nível de experiência, o romance fecha seu ciclo (e abre um novo círculo de possibilidades), e todo o trajeto de Diário da queda adquire outra camada: tornar viável essa inviabilidade. O efeito é impactante e muito bonito: o romance adquire uma fisicalidade, quase a função prática de um manual. De repente, descobrimos que os olhos com que líamos o romance podem ser os olhos de um outro, lendo o mesmo livro que nós, e a leitura que faz esse novo personagem seria uma leitura completamente diferente, que conteria a história de uma tradição passada por um processo de tábula rasa. 

Pode-se dizer que um dos pecados de Diário da queda é não ser uma obra-prima. A “função prática” que ele adquire no final é o motivo de sua eficácia, e também o motivo pelo qual ele é incapaz de continuar vivendo na memória. O romance tem essa característica de autocombustão, que é o que o faz funcionar na releitura: ela foi exatamente como da primeira vez, todas as suas partes exatamente no mesmo lugar, realizando as mesmas funções, com sua teleologia renovadora impactante esperando no final.  Ele não existe fora da maquinaria. Suas qualidades são seus defeitos. Se existem livros que querem substituir o mundo por outros, feitos de pura linguagem, que demandam revisitações através das quais há sempre algo novo a se descobrir, Diário da queda está satisfeito em fazer parte do nosso mundo comum, onde Auschwitz possui a estabilidade de continuar sendo o mesmo signo complicado de sempre. Esse sentimento confortável de segurança, que emerge no fim, parece minar o mistério necessário para que o romance continue existindo e se desdobrando na memória, adquirindo outros contornos, se revelando e se escondendo intermitentemente. Para uma história tão preocupada com memórias, isso soa no mínimo problemático.

3 comentários:

  1. "fisicalidade, função prática de um manual" achei fera a descrição, mas não entendi se isso é bom ou ruim (:

    ia comentar mais coisa, mas percebi que não lembro tão bem do livro

    ResponderExcluir
  2. Fala, Leonardo,

    Que bom que colocou seu texto aqui, ainda que parcialmente. Podia colocar tudo. Enfim, aproveito pra comentar agora como também gostei das tuas ideias sobre o Diário da queda e aproveitando pra tentar responder a pergunta do Vinicius me parece que a interpretação é tão genuína que é o que possibilita o sucesso da proposta do livro e também impossibilita algo além dela. Essa compreensão da pragmática do livro não costuma ser alcançada e ficam dizendo que o romance é uma profunda reflexão quase que em ofensa da proposta do Laub. O da Vigna me pareceu o contrário, que falha na proposta, mas tateia a algo mais interessante do que o que poderia alcançar. Aproveitando o Vinicius, você já leram o Divórcio, do Lísias? Achei muito muito melhor que o falho Céu dos suicidas e ouso dizer que se compara ao Livro dos mandarins, de uma forma bem oposta. Mas, enfim, é desses livros que se ama ou se odeia e não arrisco recomendar. E A maça envenenada? Nesse ainda não tive interesse.

    abraço,
    Raphael D.

    ResponderExcluir
  3. Valeu pelos comentários, povo!

    Vini, quis dizer que é bom, que é um efeito estético irado, e é o que faz a leitura valer a pena.

    Mas que tb faz o livro logo se esgotar, como se dissesse 'tá tudo bem agora', e Auschwitz termina sem nenhum estremecimento, e também nossa experiência.

    Evidentemente não é proposta do Laub estremecer nada, e o livro funfa bemzão até o final. Depois evapora.

    Eu ia dizer 'evapora pra mim', mas pelo visto é o que aconteceu com mais um monte de gente.

    Raphael, não gostei da parte da Lunardi. Fui reler e achei dispensável, não rende, por isso preferi nem por. Acho que a parte do Laub provoca alguma coisa.

    Você quis dizer 'Lunardi', ao invés de 'Vigna'?

    Não li Divórcio ainda. To vendo se resenho ou esse ou 'A maçã envenenada' pro Rascunho. Tenho interesse pq parece que usa o mesmo mecanismo do Diário, de notas e tal.

    Abração!

    ResponderExcluir