segunda-feira, 9 de junho de 2014

Kenneth Burke

Tradução selvaje de um trechinho do Rhetoric of Motives (pgs 37-39) do Burke sobre categorias freudianas vistas à luz da Retórica (no sentido sempre amplo e fantástico do Burke). 





RETÓRICA DO ENDEREÇAMENTO 
(à alma individual)

(...)

Há um forte ingrediente retórico na preocupação freudiana com a neurose de pacientes individuais.

De fato, o que poderia ser mais profundamente retórico do que a noção de Freud do sonho que ganha expressão por via de subterfúgios estilísticos designados para evadir as inibições de um censor moralista? O que é isso senão o exato análogo dos dispositivos retóricos da literatura sob censura política ou teocrática? O ego com seu id confronta o super-ego tanto quanto um orador confrontaria uma espécie de audiência estranha, cujas suscetibilidades ele deve lisonjear de forma a dar o passo necessário em direção à persuasão. A psiquê freudiana é um parlamento e tanto, com interesses conflitantes expressados através de caminhos diversamente designados para levar em conta as reclamações de facções rivais.

Em particular,  pensamos na preocupação de Freud com o papel de uma audiência, ou de uma "terceira pessoa" com quem o orador estabelece uma relação, em sua comum empreitada direcionada contra tiradas tendenciosas. Eis aqui o mais puro padrão retórico: orador e audiência como parceiros de piadas exaltadas feitas à custa de outro. Se você “internalizar” tais variedades de motivos, de modo que a mesma pessoa possa de alguma maneira estar nas três posições, você tem um indivíduo complexo de muitas vozes. E embora isso tudo possa ser tratado, sob o tópico do Simbólico, como um concerto de princípios que modificam-se mutuamente uns aos outros, da mesma maneira eles podem ser vistos, do ponto de vista da Retórica, como uma querela parlamentar a qual o indivíduo reuniu da mesma maneira que ele junta medos e desejos, amizades e inimizades, saúde e doença, ou então aqueles pequenos renascimentos por meio dos quais, ao nascer para uma condição nova, ele morre para uma velha, sendo seu desenvolvimento dialético, uma série de termos em perpétua transformação.

Então por uma rota desviada nos deparamos com outro aspecto da Retórica: sua natureza enquanto endereçada, já que persuasão implica audiência. Uma pessoa pode ser sua própria audiência, desde que ela, mesmo em seus pensamentos secretos, cultive certas ideias ou imagens para efeitos os quais ela espera que essas ideias ou imagens possam ter sobre si própria; ela é aqui o que Mead chamaria de "um 'eu' endereçando seu 'eu'" [an I adressing its me]; e é a respeito disso que ela está sendo retórica quase como se ela se valesse de imagens agradáveis para influenciar uma audiência externa, ao invés de uma interna. Na Retórica tradicional, é enfatizada a relação com uma audiência externa.  A Retórica de Aristóteles, por exemplo, lida com o apelo à audiências nesse sentido primário: ela lista crenças típicas, de forma que o orador possa escolher, entre as crenças, aquelas com as quais ele identificaria favoravelmente sua causa, ou identificaria desfavoravelmente a causa de um oponente; e a Retórica de Aristóteles lista as características de caráter com as quais o orador deve procurar se identificar de maneira a dispor favoravelmente de uma audiência. Mas a retórica moderna, pós-cristã, deve também se preocupar com a noção de que, sob o tópico do apelo à audiências, estariam inclusas também quaisquer ideias ou imagens privadamente remetidas ao eu individual para propósitos moralistas ou encantatórios. Pois você se torna sua própria audiência, em alguns sentidos uma muito vaga, em outros uma muito específica, quando você se envolve em subterfúgios psicologicamente estilísticos ao apresentar seu próprio caso para você mesmo em termos simpatizantes (e até termos que pareçam crueis, de perto revelam-se muitas vezes elogiosos, tal como com neuróticos que castigam-se a si mesmos em nome de motivos elevados, os quais, quaisquer sejam seus malogros, alimentam seu orgulho individual).

Tais considerações nos tornam alertas para o ingrediente retórico em toda socialização, considerada enquanto processo de moralização. O indivíduo, se esforçando para formar-se de acordo com as normas comunicativas que se aplicam aos meios cooperativos de sua sociedade, está igualmente preocupado com a retórica da identificação. Para agir sobre si mesmo persuasivamente, ele deve recorrer variadamente a imagens e ideias que são formativas. A educação ("doutrinação") exerce de fora tal e tal pressão sobre ele; ele completa o processo a partir de dentro. Se ele de alguma maneira não age para dizer para si mesmo (enquanto sua própria audiência) o que os diversos tipos de oradores disseram a ele, sua persuasão não está completa. Apenas são efetivas as vozes exteriores que conseguem falar na linguagem de uma voz interior.

Entre os Tanala de Madagascar, é dito, a maioria dos membros suscetíveis ao tromba ("ataque neurótico indicado por um extremo desejo de dançar"), descobriu-se, estão entre os menos favorecidos da tribo. Tais ataques, diz-se, são um dispositivo que torna o possuído "o centro de toda atenção". E depois os membros mais ricos e poderosos da família da vítima pagam a conta, para que "o ego do indivíduo esteja bem satisfeito e ele possa socializar até que o próximo ataque da tromba ocorra." Em suma, "como a maioria dos ataques histéricos, a tromba requer uma audiência."

As citações são de A. Kardiner, The individual and his society. Elas sugeririam que, quando perguntarmos o que mais estaria no escopo do nosso tópico, poderíamos também incluir uma "retórica da histeria." Pois aqui também há expressões que são endereçadas – e então confrontamos a ironia derradeira, ao entrevermos como até mesmo uma catatonia que cai em puro automatismo, para além do alcance de toda comunicação linguística normal, é em sua origem comunicativa, endereçada, embora isto seja, paralogicamente, um apelo-que-acaba-com-todos-os-apelos.

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