quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Um sonho antigo

Em qualquer galeria de arte decadente, de política do corpo, de exposição de fluxo, eles estariam lá, os cariocas, os novos cariocas, os cariocas que pela primeira vez na história da Guanabara se autointitulam cariocas de uma maneira diferente dos outros cariocas, a palavra agora pronunciada com outro fôlego, inspirado em ares recentes, renovados. Ver corpo e pele e pobreza estetizados é uma educação.

Era o prédio antigo, no centro da cidade, onde havia morado dos três aos doze anos de idade, que agora tinha infinitos andares. Estava no elevador, que subia sem parar, e a cada andar tudo se tornava mais decadente. O elevador parou no penúltimo andar e ele saiu para o corredor: um oásis de riqueza. Era o apartamento de uma senhora rica que ele agora ajudava com as compras. Ele carregava todas as compras e a senhora nenhuma. Quando terminou de depositar as sacolas na cozinha, a senhora o abandonou sem agradecer, e ele foi deixado sozinho para encontrar o caminho pra fora daquele labirinto de riqueza.

Encontrou o caseiro.

– Onde fica o elevador?

– É melhor você pegar a escada porque a vizinhança tá cada vez pior. A escada te levará a um lugar seguro, o elevador não.

– Tá tão violento assim? Não era assim antes.

– Pega a escada.

Andou e andou mas nada de escada. Andava com receio de encontrar a dona da casa, que foi o que acabou acontecendo. Diante dela a vergonha era insuportável. Ele falou rápido, com vergonha, com pressa de sair dali.

– Desculpe incomodá-la de novo, senhora, mas não encontro nem o elevador nem a escada.

– Vai por ali, ela disse sem olhá-lo.

Do lado do elevador estava a escada, que só descia, embora houvesse mais um andar acima. Para baixo era um túnel infinito por onde só se enxergava escuridão. Pegou o elevador.

A luz amarelo-vômito do elevador era conhecida, era a da sua infância, a do prédio onde cresceu, mas no sonho, ou na infância mesmo, era luz de pobre. O elevador subiu sozinho.

As portas se abriram e ele saiu para um vasto espaço fechado de pura decadência, como um aeroporto vazio ou um estacionamento feito de banheiro de boteco. Era uma galeria de arte. Paredes de concreto sem acabamento, cinza e preta, cobertas de pichações e figuras extremamente realistas, tridimensionais, de gente pregada na parede, entulho também mas só nos cantos, ligeiramente estetizados. A vaziês era reforçada por uma dupla de garotas que se detinham nas paredes para observar uma pichação ou um entulho. Ele fez o mesmo, se sentindo um hipócrita.

Ouviu uma voz familiar distante o chamando. Era sua ex-namorada, que estava com a namorada. Fazia sentido sua ex-namorada estar numa exposição de arte decadente, e ainda mais namorando uma menina, assim, aos quatro ventos. O circuíto carioca de arte de vanguarda cumpria o que prometia. Ele continuou observando as pichações.

Sua ex-namorada veio correndo atravessando toda a galeria de pobreza, inclusive deixando a namorada para trás. Ela chegou recuperando o fôlego, exultante de alegria com a coincidência de encontrá-lo ali. Havia carinho e amizade genuínas nela, diante dele, essa pessoa que já fora tão importante pra sua vida, e ele se comoveu. Mas reencontrar uma memória que já fora triste, depois feliz, depois triste de novo – sua empolgação descontextualizada agora nos constrange. Em sua comoção um demônio veio embrulhado e nasceu nele o desejo de crueldade.

Ela foi abraçá-lo e ele colocou um braço entre eles.

– Calma, menos.

A expressão dela fechou, mas ela lutou para manter viva a alegria. Ele quis chorar, mas estava indignado demais pela falta de recato.

– Que coisa te encontrar aqui, como você tá, o que tem feito da sua vida? Me conta!

A namorada os alcançou.

– Essa é a sua namorada? Parabéns, hein.

A namorada olhou para a ex-namorada, u m olhar cúmplice, um olhar de quem não estava nem um pouco surpresa.

Ele, sua alma, era irremovível, e diante das duas, estava ali como uma armadura sem corpo guardando os turistas de um museu.

– Essa é X, X, esse é o meu ex-namorado. Eu queria tanto que vocês se conhecessem.

– Pra quê?

– Acho que vocês iam gostar um do outro. Vocês são as pessoas mais interessantes que já conheci.

A namorada revirou os olhos.

– Mas você tá gostando da exposição? Me conta algo da sua vida.

– Isso não é uma exposição, isso é pobreza de verdade. Minha vida tá igual sempre, você sabe disso e continua me perguntando.

A ex-namorada olhou a namorada. Nada de novo no front.

Ele se irritou.

– Já não basta você vir aqui ver pobreza em museu, ainda tem que fazer isso no prédio onde morei muitos anos antes de sequer te conhecer? Deixe minhas memórias fora disso.

– Ele é realmente o filho da puta que eu imaginei, privadamente, enquanto você me contava dele com os olhos brilhantes e um pouco tristes, disse a namorada para a ex-namorada.

A namorada começou a puxar a mão da ex-namorada para irem embora. Mas a ex-namorada se desvencilhou e o abraçou.

– Fica bem. Qualquer coisa me liga.

E as duas continuaram andando pela galeria, se detendo nas obras. Ele foi esquecido ou sequer existiu.

Extirpado de seu corpo, ele agora era a câmera, puro ponto de vista. A ex-namorada chorou e correu para o banheiro. Havia papel higiênico manchado de merda no chão e nas paredes. Ela se ajoelhou na privada suja. Chorou muito mas não se sujava. Vinha a voz abafada da namorada: “Por que você sofre por aquele babaca?”. Ela se acalmou e era uma adolescente que se exaure de tanto chorar e agora escreve em seu diário como se recuperasse o fôlego. Ele viu as palavras que ela escrevia, estavam escritas na água suja da privada, mas eram um texto mal editado em fita VHS, e não significavam nada ou ele havia desaprendido a ler ou significavam apenas o que todo texto transmitido por mídias antigas significa em primeiro lugar, uma obsolescência ingênua de ponto de vista, à despeito da mensagem.

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