terça-feira, 3 de maio de 2016

Carta de amor e política (pt. 1)

"É o seguinte, e não espero que você entenda. Acho que sou de 'esquerda' mas antes de você deixar isso afundar, digo logo que não me sinto autorizada a ser nada, não sou nada. Não consigo lidar nem com dois quarteirões sem sentir uma fortaleza se armando aqui dentro. Preciso mesmo, o tempo todo, me defender. Até na padaria, um caminho seguro e tranquilo, e lá vou eu, armada até os dentes. Sorrio, digo boa tarde, boa noite, sou educada, sou prestrativa, mas estou cem por cento do tempo atenta ao canto de olho, meu corpo todo empenhado em vigiar invasões nas fronteiras. Chego em casa direto para o banheiro e vomito, suando, lacrimejando. Tento vomitar em silêncio, não quero ninguém vindo segurar meu cabelo. No curto período de alívio enquanto meu estômago se prepara para a próxima, me armo novamente contra as risadas dos meus pais cozinhando o jantar, que nesse estado parecem escárnio puro e simples, usurpadas em seguida por uma cara de súplica fingida. A culpa é imensa. Querem a comida que não vou comer, e quem tem fome não distingue entre fingir e suplicar de verdade, são esses que seguram meu cabelo, rindo do meu estado.

Lavo a boca e enxugo o suor, me sento à mesa e arranjo um sorriso na cara. Tento conversar mas só consigo reagir, responder, regurgitar educação. A comida é posta na minha frente e o cheiro imediatamente me enjoa. A cada riso, a cada dente banco mostrado, a cada pergunta sobre minha vida, me sinto mais fraca. Engulo a comida sem mastigar, ponho na verdade papel higiênico molhado na boca. Não tenho fome. Precisaria comer por respeito à fome que deveria sentir, mas tenho que respirar fundo para sufocar o enjôo com muito ar, pois ainda tenho pulmão jovem e saudável. Devo manter a barriga vazia para poder reclamar. Nunca pus um cigarro na boca, e o ar que meus pais soltam quando riem é o ar que me é roubado por essas gargalhadas, que imagino enquanto olho o prato para não olhar para eles .

Estou tentando ser sincera. Que direito meu corpo tem de se revoltar só porque algo dentro dele decidiu se afundar por vontade própria? Que tenho eu a ver com isso?

Sim, meu portugês é “bom”. Saiba que, apesar do orgulho com que exibo minhas notas na mesa de jantar, sou a pessoa mais facilmente educável do mundo. Não tenho nada dentro de mim a não ser comida recusada e muito espaço de sobra. Assim se aprende qualquer coisa.

Na rua é a mesma coisa: “aprendo” o que você ignora.

Quando não posso mais ficar na mesa fingindo estar bem, peço licença e levanto. Nesse momento as risadas cessam e os dois me olham contornar a mesa. Quando vou deixar a sala, meu pai fala (imagino) para seu prato: “Criatura egoísta”. Lavo a louça e vou para o meu quarto e tranco a porta com força, para parecer egoísta mesmo, para repetir na minha própria língua, segundo minha própria vontade, as palavras dos outros que se meteram no meu estômago (ao lado das minhas outras palavras, do português inteiro.)

Sou realmente a pessoa mais egoísta que já vi, agora eu que digo isso.

E é nesse estado que ligo o videogame e tem início o processo de esquecimento. O enjôo aos poucos desaparece. Sim, em algum momento vou ter que sair na rua novamente, e penso, sim, claramente, que não é isso que vai me ajudar. O segredo é não dar muita atenção a esse pensamento, deixá-lo passar varado como um pássaro indo cuidar da sua vida. Que tenho eu com isso?

Jogo um jogo — você não conheceria mesmo se eu falasse; aliás, te mandar isso é como escrever para a própria língua portuguesa, monstruosa, antiga, às vezes domável e amável, mas que se esforça para se enfeiar de modo a corresponder aos novos tempos — jogo um jogo que contém muitos, muitos mendigos, é uma cidade tomada por mendigos, e claro que eles querem me fazer mal. E não sinto nada, nada. Eles são legião, mas eu também sou. Agora me sinto a porta-voz do meu povo, um povo que não sente nada, que só joga, e que no tempo livre domina seus meios de comunicação, povo ao qual vocês prestam respeito todos os dias, vocês inteligentes.

É mentira, sentimos muitas coisas. Veja: não ando mais de bicicleta, não vou mais ao cinema, faz anos que não vou à praia. Nenhuma dessas coisas se compara ao que sinto quando jogo. Viu? Tenho certeza que não.

De resto, tudo que eu sinto dou descarga.

Vou te contar uma perversão: quando vamos comer fora, insisto sempre que sentemos do lado de dentro dos restaurantes e bares. Na verdade, entro direto, atravesso as mesas ao ar livre, passo pelas portas e fico o mais longe possível dos vidros que dão para a rua, enquanto meus pais ainda procuram um lugar com uma vista bonita. Se acontece deles ganharem e eu não tenho mais desculpas, e tenho que sentar do lado de fora, passo o resto da noite me defendendo, sinto concretamente meus reflexos engatilhados nas minhas juntas. Já parou para pensar nos reflexos? Nunca faça isso, siga meu conselho. Caso decida prestar atenção neles, pensar neles, eles que justamente prescindem de qualquer pensamento, vai acabar descobrindo que nosso corpo é de fato uma fortaleza automática, aperfeiçoada depois de muita bala a ponto de agir sozinha sem a intenção do mestre, que de todo modo só possui seu alto cargo por causa de acordo político.

Não me diga que não sou “afetada” pelas coisas, só porque estão separadas. O afeto que vocês falam é só um afeto entre muitos. Por causa dos meus vocês me expulsariam do clubinho, sei bem.

Mas te mando isso na pausa do jogo que estive jogando há duas horas, já estou distante do que me fez começar, e não vou reler nada.

Você me perguntou porque não me importo com política. É isso. Sinto que deveria terminar catando as peças de um coração no teclado, mas acho que você o receberia empapado em bile. Tchau."

Parte 2

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