segunda-feira, 17 de março de 2014

Assaltos

Todo mundo sabe que não se deve reagir a assaltos.

O depoimento dos assassinos de uma garota em São Paulo: morreu porque reagiu. Ninguém mandou.

Converso com uma defensora do assalto passivo, do "melhor o dinheiro do que a vida". Tento refletir sobre as conseqüências de transformar uma simples postura em um procedimento tácito, automático, de sobrevivência.

O procedimento também funciona como uma promoção profissional. Quem é levado a invocar o pacto não faz nada senão usufruir dele, exatamente como o outro lado, o que invoca o pacto na hora H.

"Vai fazer o quê? reagir? É assim que as coisas são. Vai reagir e tomar um tiro? Vai argumentar com bandido e tomar um tiro?"

O problema está próximo demais, é muito real e concreto, e eu o trato como uma abstração, uma discussão. Para minha interlocutora, que está aterrorizada, é uma questão prática, aterrorizante. Não tem nada de abstrato.

É uma postura gerada pelo terror. O terror disfarçado de praticidade. A realidade é tão aterrorizante e feia que não pode ser discutida. Ela só quer se ver livre dela, e imaginá-la é potencializá-la.

A imagem do assalto fatal não é muito diferente de conceitos como estética da violência, estética da fome, estetização do terror etc, quando mal utilizados, quando embrulhados no pacote da realidade crua objetiva.

Isso significa que a estética do terror - uma estética que precisa mostrar o terror objetivamente,  é um discurso ele próprio aterrorizado, que faz o que faz simplesmente porque está com medo, produzido por gente que está com medo. Gosto de Rubem Fonscea (por exemplo), mas existe um sentido em que sua obra é aterrorizada. Pense nos moleques de "Feliz ano novo" matando todos os ricos, pense nas descrições da escopeta deixando o corpo grudado na parede, pense nos assassinos rindo. Pense em como Rubem Fonseca se eleva retoricamente acima dos brancos aterrorizados – gente que bem poderia ser o próprio Rubem Fonseca, fosse seu apartamento no Leblon invadido. Em algum sentido, RB está fugindo dele mesmo, de seu próprio terror. Cada um lida com o terror como pode. Mas penso que, hoje, isso não é mais suficiente.

O protocolo ou pacto é no fundo como uma bandeira branca de rendição que se carrega, todo o dia, à caminho do trabalho, com olho esbugalhado e mente paralizada. Quando uma opinião corrente torna-se crença inabalável, endurece em concretude prática (reaja e morrerá), e começa a operar na realidade contra a qual ela só pretendia se resguardar, a hora é a de uma contracrença.

A consequência é que o pacto cria a esperança de uma realidade aterrorizante simples e evitável, simplesmente evitável. A invocação é só mais um recalque.

Mas é difícil, é difícil, não convenço minha interlocutora.

É foda, não vamos parar, não paremos nunca.

Seis milhões de pessoas tomando cerveja na praia de Ipanema num sábado de sol. O assunto chegou na violência urbana, e ao invés de gritar uns com os outros, romper amizades, discutir partidos políticos, seis milhões de pessoas colocam a mão no queixo, abaixam os olhos e pensam todas juntas, numa bonita coincidência: é complicado. O mar começa a inchar, engole primeiro os jogadores de volei, depois os sentados em cadeiras de praia, em seguida os que acabam de pôr os pés na areia, a água engole a calçada, os quiosques, os nossos amigos. Quando a cidade inteira já está de baixo d'água, todos mortos, descobrem que precisam multiplicar cada corpo contabilizado por três, não contabilizados.

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